quarta-feira, dezembro 31, 2014

Soberania alimentar: 5 passos para esfriar o planeta e alimentar sua população

Entre 44% e 57% de todas as emissões dos gases estufa provêm dos sistemas de alimentação globais. Entenda como isso funciona e as soluções para o problema.


Foto: CCAFS/2014/Prashanth Vishwanathan

Como a cadeia de produção global de alimentos contribui para o aquecimento global:

Desflorestamento: 15-18%
Antes que as plantações comecem, os tratores fazem seu trabalho. Pelo mundo todo, a agricultura industrial está se lançando sobre as savanas, as áreas úmidas e as florestas, lavrando uma enorme quantidade de terrenos. A FAO diz que a expansão da fronteira agrícola é responsável por volta de 70-90% do desflorestamento global, e a metade disto para a produção de alguns poucos commodities voltados à exportação. A parte agrícola do desflorestamento contribui com 15-18% das emissões globais de Gases do Efeito Estufa

Agricultura: 11-15%
Se reconhece que a agricultura contribui com 11-15% de todos os gases estufa produzidos no mundo. A maior parte destas emissões resultam do uso de insumos industriais, como fertilizantes químicos e combustível para os tratores e maquinário agrícola, assim como o excesso de estrume gerado pela criação de gado.

Transporte: 5-6%
A cadeia produtiva da alimentação atua como uma agência de viagens global. Plantações para a alimentação de animais podem ser feitas na Argentina, para alimentarem frangos no Chile, que serão exportados para a China, onde serão processados e comidos em McDonalds dos EUA. Muita da nossa comida, produzida sob condições industriais em lugares distantes, viajam milhares de quilômetros antes de alcançarem nossos pratos. Nós podemos estimar que o transporte de comida está ligada a um quarto dos gases estufa produzidos pelo transporte mundial, ou 5-6% do total destas emissões.

Processamento e embalamento: 8-10%
O processamento é um passo altamente lucrativo da cadeia industrial do alimento. A transformação de alimentos em refeições prontas, salgadinhos e bebidas necessitam de uma enorme quantidade de energia, principalmente na forma de carbono. Assim como o embalamento e enlatamento desta comida.

Comercialização e refrigeração: 2-4%
A refrigeração é o sustentáculo das cadeias de supermercado e fast food. Onde quer que o sistema industrial de alimentos vá, a cadeia da refrigeração o acompanhará. Considerando que a refrigeração é responsável por 15% de todo consumo de eletricidade no mundo, e que o vazamento de químicos são uma grande fonte de gases estufa, podemos dizer com segurança que a refrigeração dos alimentos contribui para cerca de 1-2% de toda a emissão de gases estufa. O comércio varejista contribui para outros 1-2%.

Desperdício: 3-4%
O sistema industrial de alimentos descarta mais da metade de toda comida que ele produz, jogada fora na longa jornada entre as fazendas e os distribuidores, os processadores de alimentos e os varejistas e restaurantes. Boa parte do que é desperdiçado apodrece em montes de lixo e aterros sanitários, produzindo uma quantidade substantiva de gases estufa. Entre 3,5-4,5% das emissões globais destes gases vêm do lixo, e mais de 90% deles são produzidos por materiais originários do sistema de produção de comida.

Soberania alimentar: 5 passos para esfriar o planeta e alimentar sua população.
1- Tomar conta do solo.
A equação comida/clima está baseada na terra. A expansão da agricultura insustentável no século passado levou à destruição de cerca de 30-75% do material orgânico das terra aráveis, e 50% do material orgânico nas pastagens e pradarias. Esta perda massiva de matéria orgânica é responsável por entre 25% e 40% do atual excesso de CO2 na atmosfera terrestre. Mas a boa notícia é que este CO2 que mandamos à atmosfera pode ser devolvido ao solo apenas restaurando as práticas que pequenos agricultores desenvolveram por gerações. Se as políticas e incentivos corretos forem colocados em prática no mundo todo, a matéria orgânica do solo poderia ser restaurada a níveis pré-industriais dentro de 50 anos - que foi mais ou menos o tempo que a indústria levou para reduzi-la. Isto iria compensar entre 24% e 30% de todos os gases estufa atuais.

2- Agricultura natural, sem químicos.
O uso de químicos na agroindústria está sempre aumentando, enquanto os solos estão cada vez mais empobrecidos e as pestes estão se tornando imunes aos inseticidas e herbicidas. No entanto, pequenos agricultores pelo mundo ainda possuem o conhecimento e a diversidade de culturas e animais para plantar produtivamente sem o uso de químicos e diversificando os sistemas, integrando agricultura e criação de animais, incorporando tudo isso à vegetação nativa. Estas práticas aumentam a produtividade potencial da terra pois melhoram a fertilidade do solo e previnem a erosão. A cada ano mais matéria orgânica é produzida no solo, possibilitando a produção de mais e mais comida.

3- Acabar com a distância da comida e focar em alimentos frescos
A lógica corporativa que resulta nos envios de comida ao redor do mundo não faz nenhum sentido do ponto de vista ambiental ou de qualquer outra perspectiva importante. O comércio global de comida, da abertura de trechos de terras e florestas para a produção de commodities agrícolas até a comida congelada vendida nos supermercados: estes são os principais culpados do sistema na contribuição às emissões de gases estufa. Muitas das emissões do sistema poderiam ser eliminadas se a produção de comida fosse reorientada na direção dos mercados locais e dos alimentos frescos, e longe das carnes baratas e comidas processadas. Mas alcançar este patamar é provavelmente a luta mais dura, enquanto os governos e as corporações estão comprometidos com a expansão do comércio de alimentos.

4- Devolvam a terra aos agricultores e parem com as mega plantações.
Nos últimos 50 anos, 140 milhões de hectares - o tamanho de todas as terras de agricultura da Índia - foram tomados por quatro culturas que crescem predominantemente em grandes plantações: soja, dendê, canola e cana de açucar. A área global sob estes e outros commodities agrícolas - todos notáveis emissores de gases estufa - irá aumentar se as políticas públicas não mudarem. Hoje, pequenos agricultores estão espremidos em menos de um quarto das terras, mas produzem a maior parte da comida mundial - 80% de toda comida em países não-industrializados, segundo a FAO. Pequenos agricultores produzem estes alimentos de maneira muito mais eficiente do que as grandes plantações, e de uma maneira melhor para o planeta. Uma redistribuição mundial das terras aos pequenos agricultores, combinada com políticas que ajudem a reconstruir a fertilidade do solo e políticas que apoiem os mercados locais podem reduzir os gases estufa pela metade em poucas décadas.

5- Esqueça as soluções falsas e foque no que funciona
Há um crescente reconhecimento de que a comida é central nas mudanças climáticas. Os últimos relatórios do IPCC reconheceram que a comida e a agricultura são grandes contribuintes das emissões de gases estufa e que as mudanças climáticas impõem desafios gigantescos à nossa capacidade de alimentar uma população em crescimento. Ainda não houve nenhuma vontade política para desafiar o modelo dominante de distribuição e produção industrial de comida. Ao invés disso, os governos e corporações estão propondo inúmeras falsas soluções. Há uma proposta vazia do Climate Smart Agriculture, que é essencialmente apenas uma repaginação da Revolução Verde. Há tecnologias novas e arriscadas como culturas geneticamente modificadas, para resistirem a secas ou projetos de geoengenharia de larga escala. Há projetos de biocombustíveis, que estão levando à grilagem de terras no Sul. E há os mercados de carbono, que permitem que os piores agressores do meio ambiente não precisem cortar suas emissões apenas transformando florestas e a terra de camponeses e indígenas em áreas de conservação. Nenhuma destas “soluções” funcionarão, pois elas trabalham contra a única solução efetiva: uma mudança do sistema industrial globalizado de alimentos, governado pelas corporações, em direção de sistemas de alimentação locais que estejam nas mãos dos pequenos agricultores.

Tradução de Roberto Brilhante
Fonte: Via Campesina/Carta Maior
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Com avanços tímidos, educação é grande desafio para os próximos quatro anos de Dilma

No primeiro governo, presidenta deu continuidade a programas iniciados por Lula e pouco inovou; para compensar, espera-se que ela tire do papel os avanços do Plano Nacional de Educação

O Pronatec, que está sendo ampliado em sua
segunda fase, é destaque do governo Dilma
São Paulo – Tirar do papel as metas e estratégias traçadas pelo Plano Nacional de Educação (PNE) é o grande desafio que a presidenta reeleita Dilma Rousseff (PT) tem pela frente. Depois de tramitar por três anos e meio no Congresso, o plano que norteia os rumos a serem seguidos nos próximos dez anos para melhorar a qualidade do ensino brasileiro – atualmente bem atrás da maioria dos países vizinhos – foi finalmente sancionado, sem vetos, em junho passado. Entre os avanços, está o aumento gradativo do percentual investido no setor pela União até atingir 10% do PIB ao final dos dez anos de sua vigência.

Entidades que atuam no setor educacional, como a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, reivindicavam que a presidenta vetasse dois trechos do documento. Um deles era a retirada da estratégia 7.36, incluída pelo Senado, que estabelece políticas de estímulo às escolas que melhorarem o desempenho no Índice de Desenvolvimento Humano (Ideb), para valorizar o mérito dos professores e diretores. Na avaliação dos especialistas, a medida pode agravar a situação justamente dos alunos e professores que precisam de mais investimentos públicos para melhorar seu rendimento.

As organizações também pediam a alteração do parágrafo 4º, do artigo 5º, que inclui na conta da educação pública – que chegará a 10% do Produto Interno Bruto (PIB) no final dos dez anos de vigência do documento – programas que repassam recursos para instituições privadas, como o Universidade para Todos (ProUni), o Ciência sem Fronteiras, o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) e o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec).

Com a inserção desses programas no montante da educação, o que sobrará efetivamente para a educação pública será 8% do PIB nos próximos dez anos, segundo cálculos da Câmara dos Deputados.

O Pronatec, aliás, é um dos principais programas de Dilma. Lançado em 2011, tem o objetivo de ampliar a oferta de cursos de educação profissional e tecnológica. Em junho passado, foi lançada a sua segunda etapa, por meio da qual serão oferecidas 12 milhões de vagas em 220 cursos técnicos e 646 cursos de qualificação a partir de 2015. A primeira atingirá a marca de 8 milhões de matrículas até o fim deste ano, com investimento de R$ 14 bilhões.

Críticas
O primeiro mandato de Dilma fecha com nota regular conforme os movimentos que militam em defesa da educação. Os pontos negativos começaram a ser dados já a partir do início do segundo ano. Em janeiro de 2012, ela nomeou o petista Aloizio Mercadante, economista mais próximo do ensino superior do que da educação básica, que deixou o Ministério da Ciência e Tecnologia para substituir Fernando Haddad, que saiu para se candidatar – e vencer – as eleições para a prefeitura de São Paulo.

Depois de dois anos no comando do MEC, livre de crises como as vividas por seu antecessor, especialmente pelos problemas no Enem, mas também sem inovar ou usar seu cacife político em favor da área, como chegou a dizer Daniel Cara, coordenador geral da Campanha, Mercadante foi transferido para a Casa Civil.

Em seu currículo, a criação do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa e a consolidação de programas como o Ciência sem Fronteiras e o Pronatec. Em seu lugar, em fevereiro passado, assumiu Henrique Paim, que era secretário-executivo da pasta desde 2006 e tinha presidido o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). O troca-troca chegou a ser visto como desprezo do governo pelo setor.

Além de dar continuidade a políticas iniciadas durante a gestão Lula, como o ProUni, o governo Dilma inovou pouco, como pouco fez para acelerar a tramitação, aprovação e a consequente implementação do PNE.

Na linha de continuidade e efetivação das políticas, Dilma sancionou em agosto de 2012 a a Lei nº 12.711, que disciplina o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio. Essas instituições têm até 2016 para reservar metade das vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. Desse percentual, metade é para estudantes de famílias com renda até 1,5 salário mínimo per capita.

Só em novembro de 2013, o MEC lançou um programa voltado para a etapa mais difícil da educação básica: o Pacto Nacional pelo Fortalecimento do Ensino Médio, para mobilizar governos estaduais a valorizar a formação continuada de professores e coordenadores pedagógicos do ensino médio público, nas áreas rurais e urbanas.

Dilma também não investiu na valorização da carreira docente. Os ajustes salariais, insuficientes, como no caso dos professores das universidades federais, levaram a uma greve em maio de 2012, com adesão de 58 das 59 universidades, que se prolongou até setembro. Além de questões salariais, os trabalhadores reivindicavam melhores condições, inclusive de infraestrutura, ainda inadequadas, em descompasso com a ampliação da rede.

Em meio à crise de 2012, o governo modificou as regras da carreira docente federal. No final de dezembro daquele ano, aprovou a Lei 12.772. Entre as mudanças, a carreira passa a iniciar sempre pelo piso da categoria, de professor auxiliar, independentemente da titulação. Mas para a categoria, a carreira foi achatada, aumentos por pontos na carreira foram retirados e os professores com doutorado, que chegavam a ganhar 75% a mais, foram prejudicados.

O primeiro mandato fecha com notas positivas também, especialmente graças a mudanças nas regras do financiamento estudantil, a criação do Pronacampo, para incentivar a educação rural, e o anúncio de construção de novas universidades federais no interior de estados como Pará, Ceará e Bahia.

Por Cida de Oliveira
FONTE: Rede Brasil Atual
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A vida e suas viradas. A volta por cima de uma geração que lutou

Livro resgata jornadas de sobreviventes da ditadura, intelectuais, artistas e líderes de um projeto nacional democrático, enquanto os “vencedores” de ontem vivem nos subúrbios da história


O momento não poderia ser mais propício para a leitura de Os Vencedores – A Volta por Cima da Geração Esmagada pela Ditadura de 1964 (Geração Editorial, 856 págs.), do jornalista Ayrton Centeno. Enquanto a direita saudosa dos anos de chumbo sai às ruas com seus gatos pingados e barulhentos para pedir intervenção militar, a imensa reportagem de Centeno chega às livrarias para relembrar uma história sombria que calou por muitos anos militantes, músicos, cineastas, atores, jornalistas, escritores e artistas em geral.

O que o autor pretende é trazer à tona uma realidade bastante evidente mas que, segundo ele, até então ninguém havia abordado: “O fato de que os vencedores de 1964 hoje estavam esquecidos enquanto os derrotados de então eram, décadas depois, são os reais vitoriosos. O ponto de partida foi uma entrevista com a então ministra da Casa Civil e pré-candidata à Presidência, Dilma Rousseff, que eu havia feito em 2010”, afirma Ayrton Centeno.

Para contar esta história, durante três anos Ayrton fez muitas entrevistas. Dilma, Tarso Genro, José Genoíno, Aloysio Nunes Ferreira, José Dirceu, Frei Betto, Gilberto Gil, Marília Pêra, José de Abreu, José Celso Martinez e Ignácio de Loyola Brandão são alguns dos que receberam o jornalista para longas conversas. A primeira delas foi com a presidenta reeleita, sobre quem ele narra toda a história, desde a infância, em Belo Horizonte, passando pela adolescência, a entrada na clandestinidade, a prisão, a tortura, a vitória contra o câncer e a conquista da presidência do maior país da América do Sul.

Segundo Centeno, o critério de escolha dos entrevistados tem uma lógica e um lado bem definidos. “Pode-se dizer que o material existente, os depoimentos a serem concedidos, as histórias a serem contadas dariam material para uma alentada coleção da resistência. Foi necessário fazer escolhas. A primeira delas foi a de ouvir apenas os resistentes. O livro, portanto, tem lado. O que não significa que pretenda subverter a verdade factual. Quanto aos entrevistados potenciais, houve alguns que, procurados, preferiram não se manifestar, caso de Chico Buarque, Caetano Veloso, Fernando Gabeira, por exemplo. A outros não foi possível ouvir por diferentes razões”, afirma.
“É possível afirmar que os vencidos de ontem, por
caminhos distintos, coletivos ou individuais,
derrotaram a derrota que lhes foi
imposta na luta armada ou desarmada
contra a ditadura, enquanto os vitoriosos de
 outrora habitam os subúrbios da memória nacional”

Devidos lugares
Os fatos são incontestáveis: “Nos últimos 20 anos, o Brasil foi governado por um professor perseguido que perdeu sua cátedra na Universidade de São Paulo e se autoexilou; um torneiro mecânico preso, condenado duas vezes e removido da direção de seu sindicato; e uma ex-guerrilheira, presa e torturada. Os três foram privados de seus direitos políticos”, reforça. E como estão aqueles que perseguiram, torturaram e mataram nos porões da ditadura?

O delegado Davi dos Santos Araújo, conhecido na época da ditadura como Capitão Lisboa, talvez tenha a resposta. Supostamente arrependido, parece ter entendido a sucessão de desgraças que viveu (infartos, cânceres, cegueira e acidentes) como castigo divino pelas atrocidades que cometeu. “Se eu soubesse que o Brasil resultaria nisso, não teria ido para lá (DOI-Codi). Hoje nossos adversários são excelências e nós não somos nada.”

“Na disputa pela memória, os perdedores venceram”, escreve Ayrton Centeno, na abertura do livro, ao observar que velhas palavras impostas pelo imaginário do autoritarismo foram ressignificadas. “Revolução, terrorismo, subversão deram lugar a golpe, tortura, resistência. Repisada a sério anos a fio, a expressão ‘Revolução Redentora’ é lida hoje apenas pelo viés da galhofa. Mesmo a imprensa que quase sempre perfilou-se com os militares, agora refere-se a 1964 como golpe, sem nenhuma cerimônia.”

Ao contrário dos algozes que têm de esconder sua história vergonhosa, os personagens de Os Vencedores, por mais difíceis e dolorosas que tenham sido suas experiências, podem se orgulhar de terem lutado por um país mais justo e democrático. Apesar de não serem histórias inéditas, são impactantes e extraordinárias. Juntas em uma mesma obra, têm peso inquestionável.

“São, no legítimo sentido do termo, trajetórias extraordem. Já era assim nos anos 1960. Mas são muito mais impressionantes agora quando as utopias são, como nunca, questionadas e o pensamento dominante está muito mais focado na realização individual, no arrivismo, no vencer na vida a qualquer preço, no consumo conspícuo, no próprio umbigo”, opina o jornalista.

Questionado sobre a entrevista que mais o emocionou, Ayrton Centeno destaca a de José Genoino: filho de sertanejos muito pobres, trabalhou na roça desde criança e calçou sapatos pela primeira vez na adolescência. Virou liderança estudantil no Ceará, contraiu leshmaniose e 20 malárias na guerrilha do Araguaia, foi preso, torturado e, por um triz, escapou de ser executado.

“Cumpriu pena longa na ditadura. Reconstruiu sua vida, foi vendedor de tintura de cabelos, depois professor de cursinho e retornou à militância no PT, após transitar pelo PCdoB e o clandestino Partido Revolucionário Comunista (PRC). Casou-se com uma companheira de trajetória revolucionária, teve filhos, elegeu-se deputado federal e liderança nacional do partido. Foi constituinte em 1988 e se tornou uma das figuras notáveis do Congresso. Na presidência do PT, foi fulminado pelo julgamento atípico do chamado mensalão e hoje luta para defender sua história.”

Os Vencedores – A Volta por Cima da Geração Esmagada pela Ditadura de 1964 faz um retrato de uma geração nascida nos anos 1940 e que era muito jovem nos anos 1960. A narrativa acompanha a travessia desses militantes, estudantes, músicos, escritores, atores, cineastas e guerrilheiros em sua derrocada até sua superação, quando se tornam referências de luta pela democracia.

Trata-se de uma obra útil até mesmo (ou ainda mais) para esses que hoje esperneiam pela volta dos militares. “Costumo dizer que a direita que está nas ruas em 2014 se faz direita menos por sua atividade intelectiva do que por sua operosidade intestinal. Mas, cuidado: todo mundo sabe perfeitamente que, adicionando agressividade e violência a este coquetel, o resultado é o fascismo. Acho que o livro será útil mesmo para quem grita pela volta dos militares. Basta encará-lo com espírito desarmado, sem milhares de certezas e nenhuma dúvida. É que Os Vencedores, entre outras tarefas, também cumpre a função de descrever algumas das situações e práticas que tornaram a ditadura uma experiência tão nefasta. Para nunca mais ser repetida”, completa o autor.

Imagens usadas na montagem de abertura: Arquivo Pessoal (Gilberto Gil); Rolando de Freitas/AE (José Celso); Juca Martins/Olhar Imagem (Lula); Reprodução (Dilma); AE (José Dirceu); Arquivo Pessoal (Genoino)

Por Xandra Stefanel

FONTE: Rede Brasil Atual

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Qual é o destino dos coletivos da “nova direita”?


Após a reeleição de Dilma Rousseff, grupos anti-PT tomaram as ruas, porém, seguem divididos entre a intervenção militar, impeachment da presidenta e a busca por uma órbita partidária

Assim que a eleição presidencial terminou, um debate ganhou as redes e as rodas de conversa: a suposta “venezualização” da disputa política brasileira. A tese ganhou força por conta dos argumentos polarizados entre “comunistas” e “liberais”. Ainda que se questione a validade histórica dos dois adjetivos dos grupos antagônicos, o fato é que o Brasil, de fato, vê surgir coletivos de oposição aos partidos de esquerda. Não que eles fossem inexistentes, porém, hoje contam com força mobilizadora para colocar cerca de 15 mil pessoas nas ruas, algo inédito desde a redemocratização do Brasil.

Circulou pelas redes reportagem produzida pelo El Pais Brasil onde se retratou os “hipsters de direita”. Com tom irônico, a matéria realizada pela jornalista Maria Martin, alertava: “Não é uma banda de rock, é a vanguarda anti-Dilma”. Na referida reportagem, o líder é identificado na pessoa de Kim Kataguiri, 18, que, segundo a matéria é defensor do sistema liberal (capitalismo). “Nós nunca vamos deixar que nosso país fique sob uma ditadura totalitária, o que é o objetivo do PT!”.

O que chama atenção na reportagem é a questão estética. O grupo representado por Kim é da classe média, gosta de arte e se veste como um personagem da rua Augusta. E nada é por acaso, como deixa claro o líder do grupo: “A esquerda se apropriou da cultura, da arte, da música, daquilo que é considerado cool ou moderno. Hipster. Nossos amigos artistas não podem revelar sua ideologia porque sofrem uma repressão cultural se não forem de esquerda”.

Ainda que a roupagem seja moderna, estes grupos (Vem pra Rua, Revoltados Online, Movimento Brasil Livre) ainda estão calcados em velhos valores da direita: Estado mínimo, família reprodutiva (leia-se heterossexual), Estado proibicionista (anti-legalização das drogas, por exemplo), políticas punitivas e de cárcere, individualismo etc. O que muda de fato são os personagens e a forma de organização.

Nova dinâmica
A questão é que podemos estar de frente para um novo momento da política brasileira. Coletivos que se organizam e vão às ruas independente da vontade e da agenda dos partidos. Pode ser que a coisa de fato se inverta: os partidos tenham que se adequar a agenda dos movimentos. Os motivos? Vários, porém, ainda é cedo para afirmar, mas uma coisa é certa: se até o fim dos anos 1990 e começo dos anos 2000, os partidos hegemonizavam as ferramentas para mobilizar pessoas e grupos, hoje os novos coletivos, à direita e à esquerda, possuem ferramentas – a internet, por exemplo – capaz de mobilizar e colocar milhares de pessoas nas ruas.

Questiona-se a coesão destes novos grupos, porém, isso deve ocorrer com as experiências, com os êxitos e fracassos, e isso tanto à direita quanto à esquerda. O que não dá é resumir estes novos grupos em duas categorias: de um lado os “malucos intervencionistas” e do outro, “esquerdopatas que desejam a revolução comunista”. Pois, é tudo muito embrionário, mas o que não se pode negar, é que a geografia do mapa político do Brasil passa por uma transformação, pelo menos, externa aos partidos políticos e do Congresso Nacional. 

Por Marcelo Hailer
Foto: Libertaum 
FONTE: Portal Fórum
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Remédio amargo, receita errada

Legislações antidrogas no Brasil tornaram-se cada vez mais repressivas, enchendo as cadeias e criminalizando o usuário

Região de São Paulo conhecida como Cracolândia, pela concentração de usuários da droga.
(ABR / Foto: Marcelo Camargo)

Caso de polícia ou doença mental. Ao longo do século XX, as legislações sobre drogas no Brasil basearam-se em uma perspectiva higienista de saúde pública, apoiada por um forte aparato repressivo. Com o passar do tempo, em vez de se flexibilizarem, tornaram-se ainda mais rigorosas, endurecendo as penas por tráfico. Os impactos dessa política são diversos, mas um deles salta aos olhos: a superlotação das cadeias.

Em 1961, sob influência da Convenção Única sobre Entorpecentes da ONU, o Brasil se comprometeu a lutar contra as drogas punindo quem as produzisse, vendesse e consumisse. No período da ditadura (1964-1985), a Lei de Segurança Nacional adotou uma linha bélica para o combate ao tráfico de drogas, equiparando traficantes aos “subversivos”, todos inimigos do regime. Esta perspectiva levou à militarização da política criminal de drogas e fez surgir o estereótipo do traficante como inimigo interno.

A separação das figuras do consumidor e do traficante – ou seja, entre o “doente” e o “delinquente” – apareceu em uma legislação de 1970. O usuário deveria ser punido com a detenção de 6 meses a 2 anos e pagamento de até 50 dias-multa. A pena era bem maior para quem comercializasse as substâncias ilícitas: reclusão de 3 a 15 anos e pagamento de 50 a 360 dias-multa.

Rigor ainda maior foi estabelecido pela Constituição Federal de 1988, que considerou o tráfico de drogas um crime inafiançável e sem anistia. Dois anos depois o tráfico foi inserido na Lei de Crimes Hediondos, proibindo-se o indulto e a liberdade provisória para quem o cometesse. O impacto dessa lei foi o aumento do encarceramento: mais e mais pessoas passaram a ser presas por tráfico de drogas a partir da década de 1990.

A nova Lei de Drogas, de 2006, anunciava-se como um marco. Pela primeira vez desde os anos 1960, o usuário e o dependente não estariam sujeitos à pena de prisão. Por outro lado, aumentou a pena mínima para o crime de tráfico, que antes era de três anos e, com a nova lei, passou a ser de cinco anos. O resultado foi uma expansão ainda maior do número de pessoas presas por tráfico, multiplicando-se punições desproporcionais e injustas. Em 2006, eram 47.472 presos por tráfico no Brasil, o equivalente a 14% da população carcerária. Seis anos depois, 138.198 detentos estavam nos presídios por conta do mesmo crime – mais de 25% de todos os detidos no país. Ainda que a lei preveja a possibilidade de redução de pena no caso de o acusado ser considerado primário, a maioria deles permanece na cadeia, em média, por pelo menos um ano e oito meses.

Gráfico representa evolução de presos por tráfico de drogas no Brasil
Maria Gorete Marques de Jesus
Em geral, os presos por contrabando de drogas no Brasil são jovens, negros e pobres. O dado reflete a histórica seletividade do sistema de segurança pública e da justiça criminal do país. Usuários são presos como traficantes. Detida em flagrante, a maioria dessas pessoas portava nada mais do que 66 gramas de drogas no bolso, o equivalente a um pacote de queijo ralado. Isto se deve ao fato de a lei não indicar critérios objetivos para a diferenciação entre usuário e traficante. A responsabilidade por essa distinção acaba nas mãos do policial que efetuou a prisão, que deve analisar a quantidade e a qualidade da droga, as circunstâncias sociais e pessoais do suspeito.

A Lei de Drogas que permanece em vigor constitui uma das principais causas do crescimento carcerário brasileiro. A atual política de combate ao tráfico não atinge a estrutura que permite a entrada da droga, sua distribuição e venda no atacado, mas atinge de forma sistemática e cotidiana a venda no varejo.

Um dos principais objetivos da lei é proteger a sociedade e prevenir a prática de atos danosos a ela. Será que a Lei de Drogas tem cumprido este papel? Os modelos de políticas focados na “guerra às drogas” vêm sendo repensados nos últimos anos. Países como Portugal e Uruguai têm mudado suas legislações e adotado políticas de redução de danos, descriminalização e legalização de algumas drogas, visando a uma maior eficácia no enfrentamento ao uso e tráfico de drogas. O caso brasileiro continua em debate, mas ele ainda gira em torno de propostas que objetivam endurecer penas e tratar o usuário como doente, com respostas como a internação compulsória.

Entre nós a discussão ainda é tímida e carregada de preconceitos e tabus, especialmente no âmbito político. Há muita resistência em se pensarem políticas alternativas de redução de danos e formas não repressivas de controle das drogas. Muitos acreditam que a implementação dessas políticas poderia ampliar o consumo de drogas e desencadear outros problemas. Mas o cenário em que vivemos já revela a falência do modelo atual.

Saiba Mais:
CARVALHO, Salo. A política de drogas no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
SHECAIRA, Salomão S. (org.). Drogas: uma nova perspectiva. São Paulo: IBCCRIM, 2014.
FIORE, Mauricio. Uso de “Drogas”: Controvérsias médicas e debate público. São Paulo: Fapesp/Mercado de Letras, 2007.
BOITEUX, Luciana; WIECKO, Ela (coords.) et al. Tráfico de drogas e Constituição. Série Pensando o Direito, n. 1. Brasília: Secretaria de Assuntos Legislativos, Ministério da Justiça, 2009 (http://www.bancodeinjusticas.org.br/wp-content/uploads/2011/11/Minist%C3%A9rio-da-Justi%C3%A7a-UFRJ-e-UnB-Tr%C3%A1fico-de-Drogas-e-Constitui%C3%A7%C3%A3o1.pdf).

Sites:
http://redejusticacriminal.org/

Filmes:
Quebrando o tabu (Fernando Grostein Andrade, 2011) - https://www.youtube.com/watch?v=tKxk61ycAvs

Por Maria Gorete Marques de Jesus - pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP) e coordenadora do livro Prisão provisória e Lei de Drogas: um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo (NEV/USP, 2011).

FONTE: Revista de História.


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terça-feira, dezembro 30, 2014

Repórter Brasil: 'Pelo amor de deus, não vá ao banheiro’

Na unidade da Contax no Recife, atendentes de telemarketing fazem questão de falar: assédios, doenças físicas e psicológicas, intervalos muito curtos para as refeições…

Armários reservados aos trabalhadores, onde eles guardam marmitas e bolsas.
Foto: Igor Ojeda

Recife (PE) - “Pelo amor de deus, pelo que você mais ama no mundo, não vá ao banheiro”, é o que Gislaine* já ouviu algumas vezes de sua supervisora em uma das unidades da Contax do Recife (PE), onde trabalha como atendente de telemarketing da operadora de celular Oi.

Em geral, o apelo acontece em dias de medição da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), uma vez ao mês. Mas as restrições às idas para satisfazer as necessidades fisiológicas são cotidianas. “Por duas vezes já fiz xixi nas calças, na rua, porque fiquei segurando durante o dia”, conta a jovem à Repórter Brasil.

Na Contax, os funcionários têm de cumprir pausas programadas: 20 minutos para as refeições e dois intervalos de 10 minutos cada. Fora desses horários, as pausas são consideradas pessoais e, por isso, o trabalhador pode perder parte de seu salário e até levar suspensões. “A gente é muito perseguida, monitorada, temos de trabalhar em cima de metas. Não pode ir no banheiro, é como se estivesse prejudicando a supervisora. A minha disse que eu só poderia ir se estivesse muito, muito, muito, apertada. ‘Você venha falar comigo e eu vejo se você pode ir’”.

Em maio de 2013, a Repórter Brasil acompanhou a fiscalização da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de Pernambuco (SRTE/PE) nas unidades da Contax no Recife. Em outubro do mesmo ano, a ação se tornou nacional e culminou, em dezembro de 2014, na autuação de sete empresas de telecomunicações e do setor financeiro por inúmeras violações trabalhistas. O Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) responsabilizou Oi, Vivo, Santander, Itaú, NET, Citibank e Bradesco por considerar ilícita a terceirização dos respectivos serviços de teleatendimento.

O site Santo Amaro, a maior unidade da empresa na capital pernambucana, chama a atenção pela imponência. Ocupa metade de um quarteirão no bairro de mesmo nome, na região central da cidade. Seja pelo lado de fora, seja pelo lado de dentro, o prédio lembra um shopping center. No interior, escadas rolantes quase sempre cheias de gente. Cerca de 15 mil trabalhadores se revezam pelos três turnos do dia. A unidade está aberta 24 horas por dia. As salas são separadas por divisórias de vidro e cada uma é reservada para uma só empresa. Os operadores de cada contratante nunca dividem o mesmo espaço. Dentro, um sem-fim de postos de atendimento enfileirados.

A circulação é intensa. Ao perceberem a presença dos auditores fiscais do Ministério do Trabalho, acompanhados de agentes da Polícia Federal, dezenas de pessoas, em sua grande maioria mulheres jovens, se aproximam. E começam a falar sem parar sobre os abusos sofridos. A sensação é de que têm muito o que dizer, mas precisam voltar da pausa programada a qualquer momento. Falam da impossibilidade de irem ao banheiro quando querem. Uma das jovens, com a barriga de grávida já bastante proeminente, reclama que sua condição exige diversas idas ao sanitário. Já se conformou em não ganhar a chamada remuneração variável por isso. Mesmo assim, sofre assédio de sua supervisora.

Outras criticam o estabelecimento de metas impossíveis de serem cumpridas, os poucos minutos que têm para almoçar ou jantar, os xingamentos e gritos que ouvem dos superiores, os problemas no ouvido, na coluna e nas articulações que adquiriram por conta do trabalho que fazem. Lembram que os médicos do trabalho contratados pela Contax são coniventes com a empresa e muitas vezes não fornecem atestado médico.

Filas para usar o microondas em uma unidade da Contax no Recife (PE)
Foto:  Igor Ojeda
Nas áreas de refeitório, aparelhos de microondas servem para os funcionários esquentarem suas marmitas, que estavam acondicionadas junto com bolsas e outros pertences pessoais em pequenos armários de ferro nos corredores. São muito poucos aparelhos para muita gente, formando filas de espera de cinco a dez minutos – para um intervalo para refeições de 20 minutos, é bom lembrar.

Gislaine sofre muito com essa realidade. “Não aguento mais, tenho crises de choro, vivo angustiada, com medo de ficar doida. Me sinto perseguida, ameaçada”, diz. “Quando estou em casa choro porque sei que no outro dia vou ter de ir trabalhar.” Além dos problemas psicológicos, a jovem padece de dores nas costas. Mas, quando se queixa, a supervisora a chama de mentirosa. “E a empresa ameaça os médicos. Fui tirar radiografia da coluna, pedi atestado mas o médico disse que não estava autorizado a fornecê-lo.”

Segundo Gislaine, as pressões contra ela aumentaram desde que souberam que ela queria ser demitida. “Quando eles sabem que a gente quer sair eles monitoram mais. Acho que estão me pressionando para eu mesma me demitir”, diz. A jovem atendente de telemarketing diz que um dos principais objetivos dos funcionários que trabalham na Contax é encontrar o que chamam de “degrau da rua”. Ou seja, ser demitido sem justa causa.

* Nome fictício para preservar a identidade da entrevistada
** Reportagem atualizada às 17hs de 23/12/2014 para acréscimo de informações

Por Igor Ojeda
Fonte: Repórter Brasil
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Luciana Santos: Luta de classes ficou evidenciada nas eleições 2014

A vice-presidenta do Partido Comunista do Brasil e deputada federal reeleita, Luciana Santos (PCdoB-PE), faz uma análise política deste ano. Ela destaca a reeleição da presidenta Dilma Rousseff, fala do golpismo midiático praticado pela imprensa tradicional e comenta a importância da regulação dos meios de comunicação para aumentar a participação dos movimentos sociais que tem crescido graças à continuidade dos governos progressistas no Brasil.


FONTE: Portal Vermelho

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sábado, dezembro 27, 2014

Instituto Lula: "Sobre o reatamento das relações EUA–Cuba"


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Instituto Lula: "Lula reafirma importância das relações com América Latina e África"


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Instituto Lula: "A reforma política é imprescindível, a começar pelo fim do financiamento público".


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Instituto Lula: "Não é só papel do governo, comece a se mexer para construir seus sonhos"


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Geografia e estratégia

A reaproximação entre Cuba e os EUA contém um paradoxo e uma lição geopolítica, sobretudo para os países que se propõem subir na escada internacional do poder.

“O Brasil terá que descobrir um novo caminho de afirmação da sua liderança e do seu poder internacional, dentro e fora de sua zona de influência imediata. Um caminho que não siga o mesmo roteiro das grandes potências do passado, e que não utilize a mesma arrogância e a mesma violência que utilizaram os europeus e os norte-americanos para conquistar suas colônias e protetorados” J.L.Fiori, “História, Estratégia e Desenvolvimento. Para uma Geopolítica do Capitalismo”, Editora Boitempo, SP, 2014, p: 279

A geografia teve um papel decisivo na formação e no desenvolvimento político e econômico da América do Sul. Por um lado, ela permitiu e estimulou a formação de um região geopolítica e geoeconômica plana, homogênea, de alta fertilidade e de crescimento econômico quase contínuo na Bacia do Prata; mas, ao mesmo tempo, ela impediu que os países e a economia do Prata – incluindo o Brasil - se expandissem na direção da Amazônia, do Caribe e do Pacífico.

No caso do Brasil, em particular, a topografia do seu território atrasou a sua própria interiorização demográfica e econômica, e enviesou os seus processos de urbanização, crescimento e internacionalização, na direção do Atlântico. A Floresta Amazônica, com suas planícies tropicas de baixa fertilidade e alto custo de exploração, dificultou a sua própria ocupação, e bloqueou o caminho do Brasil na direção da Venezuela, Guiana, Suriname, e Mar do Caribe. O Pantanal e o Chaco boliviano, com suas montanhas e florestas tropicais limitaram a presença do Brasil nos territórios entre a Guiana e a Bolívia; e a Cordilheira dos Andes, com seus 8 mil km de extensão e 6.900 metros de altitude, obstruiu o acesso do Brasil ao Chile e ao Peru, e o que é ainda mais importante, ao Oceano Pacífico com todas as suas conexões asiáticas.

Esta geografia extremamente difícil explica a existência de enormes espaços vazios dentro do território brasileiro e nas suas zonas fronteiriças, e sua escassa relação econômica com seus vizinhos, durante quase todo o século XX, quando o Brasil não conseguiu – nem mesmo - estabelecer um sistema eficiente de comunicação e integração bioceânica, como aconteceu com os Estados Unidos, já na segunda metade do século XIX, depois da sua conquista da Califórnia e do Oregon, que se transformou num passo decisivo do seu desenvolvimento econômico, e da projeção do poder global dos Estados Unidos.

Todas estas barreiras e dificuldades geográficas, entretanto, adquiriram uma nova dimensão e gravidade, no início do século XXI, graças: i) a transformação da China, do sudeste asiático, e da Bacia do Pacífico, no espaço mais dinâmico da economia mundial; ii) sua transformação simultânea, e no tabuleiro geopolítico mais relevante para o futuro do sistema mundial no transcurso do século XXI; iii) a consequente, “chegada’ econômica da China ao continente sul-americano, e ao Caribe e América Central, sobretudo depois do anúncio da construção do novo Canal Interoceânico da Nicarágua, financiado e construído pelos chineses, a um custo previsto de 40 bilhões de dólares; iv) a consequente revalorização geopolítica e geoeconômica do Caribe e da América do Sul, como tabuleiros relevantes da competição global entre os Estados Unidos e a China, e da competição regional destes dois países, com o Brasil.

Esta nova situação obriga o Brasil a redefinir ´inevitavelmente - sua estratégia, e o cálculo de custos do seu próprio projeto de integração regional, incluindo a ocupação dos “espaços vazios” da América do Sul, e da “conquista” do seu acesso ao Oceano Pacífico e ao Mar do Caribe. Este tem que ser o ponto de partida do debate sobre a Unasul e o Mercosul, e sobre o fortalecimento da soberania política e econômica do continente, incluindo, como é óbvio, os países sul-americanos da Aliança do Pacífico. Mas este ponto é esquecido em geral pelos analistas, e é substituído por uma discussão sem fim sobre a “lucratividade” comercial ou financeira, do projeto e do processo da integração continental. Estes analistas não entendem ou não querem aceitar que se trata de um objetivo e de um processo que não pode ser avaliado apenas pelos seus resultados econômicos, porque envolve um jogo geopolítico e geoeconômico muito mais complexo e global.

Desta perspectiva, o recente reatamento das relações diplomáticas dos EUA com Cuba, explicita e aprofunda esta disputa pela supremacia regional. Foi uma vitória política indiscutível de Cuba e da América Latina, e também, do “internacionalismo liberal” de Barack Obama, que luta para sobreviver ao seu atropelamento pelo ultraconservadorismo dos republicanos, e de muitos dos seus próprios partidários democratas. Mas ao mesmo tempo, esta reaproximação é inseparável da expansão econômica chinesa no Caribe e na América Central, e do anúncio do novo “Canal da Nicarágua”, com 278 km de extensão, bem maior e mais complexo do que o Canal do Panamá, e com a obra programada para começar em dezembro de 2104. Uma disputa que começa no Mar do Caribe, mas se projeta e prolonga na luta pela liderança política, econômica e estratégica da América do Sul.

Neste sentido, a reaproximação entre Cuba e os EUA contém um paradoxo e uma lição geopolítica, sobretudo para os países que se propõem subir na escada internacional do poder e da riqueza: uma vitória parcial, em qualquer tabuleiro do sistema provoca sempre o aparecimento de um novo desafio estratégico ainda mais complexo do que o anterior. Neste caso, foi uma vitória dos “povos latinos” e de certa maneira, da própria política externa brasileira, mas esta mesma vitória aumenta a urgência do Brasil abrir seus canais de comunicação e transporte com o Mar do Caribe e com a Bacia do Pacífico, a qualquer preço, e por mais criticada que seja a rentabilidade econômica imediata do projeto.

Por José Luís Fiori (cientista político e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro).  
Fonte:Carta Maior

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