Uma cisterna não é apenas uma cisterna. Não é só água o ano inteiro em casa e à disposição. Não é apenas a água da chuva caindo do céu, canalizada, preservada para ser bebida, fresca, pura, limpa como o céu é limpo nos tempos de seca. A segunda cisterna não é apenas a segunda água para produzir a verdura ao redor de casa, alimentar a vaquinha, os galos e galinhas. A cisterna é também, ou talvez mais que tudo, sonho, trabalho coletivo, consciência de comunidade, de ser gente. É autonomia, é ter vez e voz, é mandar em si mesmo, é saber que a seca não é produto de um Deus inclemente, ou situação que nunca pode ser superada, ou com a qual não se pode conviver.
Foi o que disse, com suas palavras, Irene Santos de Jesus, agricultora familiar de Serrinha, Bahia, deixando-nos todos emocionados, os olhos cheios de lágrimas, eu, o Jorge da Action Aid, outras tantas e outros tantos. Irene deu depoimento no 6º Diálogos Brasil Sem Miséria, organizado pelo Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) e Secretaria Geral da Presidência da República, em 11 de dezembro, Brasília, com presença de lideranças de diferentes organizações e movimentos sociais e gestores governamentais. "Tenho duas tarefas de terra, onde não produzia nada. Hoje tenho mais de dez canteiros, onde planto. Hoje vou na cidade e vendo o que produzo. Fiz cinco empréstimos, que pago todos, um para comprar uma vaquinha, pra dar o leite que eu e minha família tomamos todos os dias. Falo com meus vizinhos pra gente trabalhar junto. A cisterna que tenho agora lá em casa me deu esta condição. Imagina se eu tivesse mais que duas tarefas de terra, o que que eu não podia fazer?”
Os últimos anos revelaram coisas e fatos pouco visíveis para muitos. Para outros, incompreensíveis ou cheios de preconceitos.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso escreveu, falando do resultado eleitoral de outubro: "A oposição ganhou, em geral, nas áreas mais dinâmicas do país (...) (Em outras regiões), a ação do governo supre a ausência de uma sociedade civil ativa e de setores produtivos mais independentes de decisões governamentais.” (Vitória amarga, Estado de São Paulo, 07.12.14, A2).
A Articulação do Semiárido (ASA), criada em 1999, quando o governo federal de então não olhava para o Nordeste, e que reúne centenas de organizações sociais do Nordeste, é fruto da luta e da consciência de lutadoras e lutadores do Semiárido brasileiro, que deram-se conta que a união de ONGs, movimentos sociais, pastorais na construção de um projeto de desenvolvimento para o Nordeste e a convivência com o Semiárido era o caminho para o sofrido povo nordestino. Ou seja, a ASA é fruto da consciência e da organização popular, ‘de uma sociedade civil ativa’. As políticas públicas que hoje acontecem na região são fruto da pressão popular, para que governos em todos os níveis sejam sensíveis às necessidades populares, sejam democráticos, olhando para todas as regiões e populações, não só para as do Sul rico e poderoso.
O povo e as organizações do Semiárido brasileiro são hoje o que eram os metalúrgicos do ABC no final dos anos 1970, início dos anos 1980: força política, energia militante e mobilizadora, construção da democracia, luta social, pensamento coletivo, proposta de desenvolvimento com inclusão e justiça social, consciência de sua capacidade e peso político, conquistando direitos, dando vez e voz a quem nunca os teve.
Quem não compreender isso não vai compreender o que está acontecendo hoje no Brasil, onde as mudanças sempre aconteceram de baixo para cima, os direitos sempre foram conquistados na luta, as poucas reformas estruturais, quando aconteceram, vieram na esteira da energia popular, obrigando coronéis e seus capachos a abrir mão de privilégios, superando os donos do poder e sua visão e prática de exclusão social e econômica. (Aliás, o Nordeste hoje é um ativo e avançado pólo econômico, à frente de outras regiões brasileiras.)
Dona Irene, ou Naidison Baptista, Coordenador Geral da ASA, quando falam, são esta sabedoria e força popular que, de tempos em tempos, faz rugir o Brasil. O Nordeste hoje mostra o futuro, de como uma região sempre esquecida e um povo historicamente explorado pensam e propõem um outro mundo, um outro Nordeste, um outro Semiárido brasileiro possível, com inclusão social, com justiça, sem crianças morrendo de fome na estiagem prolongada, sem multidões de pobres e deserdados fugindo para as grandes cidades por falta de comida e de alternativas. Constroem um Semiárido com qualidade de vida, onde se planta, onde se produz, convivendo com a seca e suas riquezas, numa sociedade civil mais que ativa, protagonista da história.
Em dezenove de dezembro de dois mil e catorze
Por Selvino Heck
Fonte: Adital
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Uma cisterna não é apenas uma cisterna. Não é só água o ano inteiro em casa e à disposição. Não é apenas a água da chuva caindo do céu, canalizada, preservada para ser bebida, fresca, pura, limpa como o céu é limpo nos tempos de seca. A segunda cisterna não é apenas a segunda água para produzir a verdura ao redor de casa, alimentar a vaquinha, os galos e galinhas. A cisterna é também, ou talvez mais que tudo, sonho, trabalho coletivo, consciência de comunidade, de ser gente. É autonomia, é ter vez e voz, é mandar em si mesmo, é saber que a seca não é produto de um Deus inclemente, ou situação que nunca pode ser superada, ou com a qual não se pode conviver.
Foi o que disse, com suas palavras, Irene Santos de Jesus, agricultora familiar de Serrinha, Bahia, deixando-nos todos emocionados, os olhos cheios de lágrimas, eu, o Jorge da Action Aid, outras tantas e outros tantos. Irene deu depoimento no 6º Diálogos Brasil Sem Miséria, organizado pelo Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) e Secretaria Geral da Presidência da República, em 11 de dezembro, Brasília, com presença de lideranças de diferentes organizações e movimentos sociais e gestores governamentais. "Tenho duas tarefas de terra, onde não produzia nada. Hoje tenho mais de dez canteiros, onde planto. Hoje vou na cidade e vendo o que produzo. Fiz cinco empréstimos, que pago todos, um para comprar uma vaquinha, pra dar o leite que eu e minha família tomamos todos os dias. Falo com meus vizinhos pra gente trabalhar junto. A cisterna que tenho agora lá em casa me deu esta condição. Imagina se eu tivesse mais que duas tarefas de terra, o que que eu não podia fazer?”
Os últimos anos revelaram coisas e fatos pouco visíveis para muitos. Para outros, incompreensíveis ou cheios de preconceitos.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso escreveu, falando do resultado eleitoral de outubro: "A oposição ganhou, em geral, nas áreas mais dinâmicas do país (...) (Em outras regiões), a ação do governo supre a ausência de uma sociedade civil ativa e de setores produtivos mais independentes de decisões governamentais.” (Vitória amarga, Estado de São Paulo, 07.12.14, A2).
A Articulação do Semiárido (ASA), criada em 1999, quando o governo federal de então não olhava para o Nordeste, e que reúne centenas de organizações sociais do Nordeste, é fruto da luta e da consciência de lutadoras e lutadores do Semiárido brasileiro, que deram-se conta que a união de ONGs, movimentos sociais, pastorais na construção de um projeto de desenvolvimento para o Nordeste e a convivência com o Semiárido era o caminho para o sofrido povo nordestino. Ou seja, a ASA é fruto da consciência e da organização popular, ‘de uma sociedade civil ativa’. As políticas públicas que hoje acontecem na região são fruto da pressão popular, para que governos em todos os níveis sejam sensíveis às necessidades populares, sejam democráticos, olhando para todas as regiões e populações, não só para as do Sul rico e poderoso.
O povo e as organizações do Semiárido brasileiro são hoje o que eram os metalúrgicos do ABC no final dos anos 1970, início dos anos 1980: força política, energia militante e mobilizadora, construção da democracia, luta social, pensamento coletivo, proposta de desenvolvimento com inclusão e justiça social, consciência de sua capacidade e peso político, conquistando direitos, dando vez e voz a quem nunca os teve.
Quem não compreender isso não vai compreender o que está acontecendo hoje no Brasil, onde as mudanças sempre aconteceram de baixo para cima, os direitos sempre foram conquistados na luta, as poucas reformas estruturais, quando aconteceram, vieram na esteira da energia popular, obrigando coronéis e seus capachos a abrir mão de privilégios, superando os donos do poder e sua visão e prática de exclusão social e econômica. (Aliás, o Nordeste hoje é um ativo e avançado pólo econômico, à frente de outras regiões brasileiras.)
Dona Irene, ou Naidison Baptista, Coordenador Geral da ASA, quando falam, são esta sabedoria e força popular que, de tempos em tempos, faz rugir o Brasil. O Nordeste hoje mostra o futuro, de como uma região sempre esquecida e um povo historicamente explorado pensam e propõem um outro mundo, um outro Nordeste, um outro Semiárido brasileiro possível, com inclusão social, com justiça, sem crianças morrendo de fome na estiagem prolongada, sem multidões de pobres e deserdados fugindo para as grandes cidades por falta de comida e de alternativas. Constroem um Semiárido com qualidade de vida, onde se planta, onde se produz, convivendo com a seca e suas riquezas, numa sociedade civil mais que ativa, protagonista da história.
Em dezenove de dezembro de dois mil e catorze
Por Selvino Heck
Fonte: Adital
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