O clima político atual se parece muito mais com o de 1954 do que com aquele de 1964. Getulio fora eleito em 1950, depois de uma campanha memorável, com 48,73% dos votos válidos, pouco menos da metade. Não tendo alcançado, por pouco, a maioria absoluta, Aliomar Baleeiro, da banda de música da UDN, pediu a anulação das eleições. Ecoavam as diatribes raivosas de Carlos Lacerda, lançadas já antes do pleito: “O senador Getúlio Vargas não deve ser candidato. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse”.
Agora temos um tom mais aveludado com FHC, que indica “a legalidade da vitória (de Dilma), mas sua discutível legitimidade”. E insinua, em palestra na Academia Brasileira de Letras: “dada a situação política e o constrangimento para mudar essa situação, não é de estranhar-se que no Brasil a solução para o imbróglio político não venha a partir do sistema político mas do sistema judicial”. A saída seria uma “judicialização das decisões”. Não um impeachment vindo pelo legislativo, mas uma decisão de fato golpista pelo poder judiciário. Juarez Guimarães, em artigo instigante, desoculta um possível caminho tucano na direção de uma tentativa de golpe. Antes de mais nada, temos que ser claros: não podemos aceitar a ideia de estarmos num terceiro turno. Dilma é a presidenta eleita por mais quatro anos e o candidato que perdeu não passa de um senador da oposição, em que pese um tom azedo e revanchista de quem não digeriu a derrota.
Os três mandatos anteriores, Lula-Dilma, tiveram como resultado uma série de impressionantes programas de inclusão, quando 50 milhões de brasileiros ascenderam na escala social e saíram dos níveis da pobreza. Temos também uma situação de, praticamente, pleno emprego. Isso foi, em parte, um dos fatores da vitória de Dilma e ainda hoje, apesar do torpedeamento implacável da mídia, 50% da população indica a expectativa de que ela terá um desempenho entre ótimo e bom no próximo mandato. Mas falta muito a fazer em áreas como educação, saúde, segurança, etc. Sem falar na necessidade de uma reforma política, uma efetiva reforma agrária e novas demarcações de terras indígenas. Além disso, seria necessário passar da simples inclusão, para reduzir as desigualdades sociais que ainda são enormes.
O recente livro de Thomas Piketty, independentemente de críticas à sua análise, aponta, com dados concretos, o crescimento das desigualdades, que seguirá se não se tomarem medidas concretas, tais como impostos sobre a riqueza. Obama não conseguiu dobrar um congresso conservador, na tributação das grandes fortunas. E aí está o centro do problema: a necessidade de uma reforma fiscal drástica. É difícil pensar isso, num legislativo que terá o continuísmo no Senado de Renan Calheiros e a ameaça de uma presidência da Câmara nas mãos de um Eduardo Cunha, distribuidor de benesses de origem duvidosa. Tarso Genro, em artigo recente, com a lucidez que lhe é própria, fala de criar um novo ponto de equilíbrio, até agora nas mãos do PMDB centrista. E propõe para a frente, uma aliança democrática de esquerda, que atravessaria partidos da atual aliança, incluindo setores de partido como o PSOL, movimentos como o MST, personalidades progressistas como Bresser Pereira, Maria Rita Khell, Pedro Dallari e a própria Marina Silva.
A entrada no governo de Joaquim Levy levanta preocupantes interrogações. Talvez represente agora, o que foi a “Carta ao povo brasileiro” no primeiro governo Lula. Num momento de dificuldades econômicas no país e na conjuntura internacional, sua presença poderia apaziguar um mercado nervoso e volátil, figura de retórica que esconde as jogadas do grande capital e dos especuladores. O importante é que, pela mão firme de Dilma, os avanços sociais não sejam travados por medidas de ortodoxia neoliberal.
Mas quero referir-me a outro elemento, que me parece no momento imediato o mais fundamental. E aqui reencontramos novamente 1954. Venho de uma geração que lutou pelo “o petróleo é nosso”. Num primeiro tempo, estava a afirmação dos setores da direita, de que o Brasil não tinha petróleo em seu solo e teríamos então que depender das grandes empresas internacionais para alimentar o mercado interno. Mas apesar de fortes repressões, em 1936, começou a surgir petróleo em Lobato, no recôncavo baiano. Num belo acaso, fazia lembrar o escritor Monteiro Lobato, que insistia com denodo, na existência de petróleo no país. Na literatura infantil, escreveu o precioso “O poço do visconde”, petróleo jorrando no Sítio do Picapau Amarelo, que líamos na infância e juventude, descobrindo dali a luta nacionalista. Mas com a comprovação de que havia petróleo no Brassil, os então chamados “entreguistas”, tiveram de mudar o discurso e passaram a dizer que não tínhamos competência técnica e seriam as grandes empresas, Esso, Shell, as que poderiam fazer a prospecção e a extração do petróleo.
Em sentido contrário, cresceu uma luta de muitos setores da sociedade, da juventude a setores nacionalistas no Clube Militar. Essa mobilização patriota levou à lei 2004 de 1953, que criou o monopólio estatal de exploração, refino e transporte. E a Petrobras transformou-se, com o correr dos anos, numa das empresas mais importantes e exitosas a nível mundial. É a nona entre as empresas petroleiras. Na lista Forbes das grandes empresas internacionais, aparecia em 10º lugar em 2012 ( caiu para o 30º posto neste ano, em virtude da crise atual, à qual voltarei adiante). O país tornou-se autosuficiente e exportador. Porém esse monopólio foi quebrado no governo FHC, com a Lei do Petróleo 9.478, em 1997, em que o setor privado passou a participar na pesquisa, exploração, extração, refino e distribuição, no regime de concessões. Está integrada, no que Amaury Ribeiro Jr. chamou, “a privataria tucana”.
Mas veio então a tremenda descoberta do pré-sal, abrindo nova dimensão na produção petroleira. Aí, no governo Lula, para esse enorme pré-sal, começou um novo regime de partilha, em que a Petrobras passou a ser a operadora única do pré-sal, num regime no qual o petróleo extraído será do governo, dividindo com empresas que vencerem leilões, parte do óleo obtido nos campos.
E estamos novamente numa luta com semelhanças à do passado. Agora, vem o mote, “o pré-sal tem que ser nosso”. É quando chega uma pressão enorme para mudar a regra da sua exploração. O Globo, de 16 de dezembro, proclama em editorial: “Monopólio de fato do pré-sal não faz sentido”. E um articulista, nesse diário, na véspera, propõe refundar a Petrobras. Não pode deixar de admitir que “a Petrobras tem um quadro técnico altamente qualificado, é detentora de tecnologia de explorar petróleo no mar e possui a quarta reserva de petróleo do mundo”. Só isso já credenciaria o país para manter o monopólio. Porém o autor do texto citado chega a uma conclusão oposta, saída do receituário neoliberal, de crença quase religiosa nas leis do mercado: a Petrobras estaria então preparada para atuar num mercado competitivo, com políticas que incentivariam a concorrência. Mas podemos raciocinar em sentido contrário. Por ter quadros técnicos competentes e tecnologia de exploração em áreas profundas do oceano, pode operar em base estatal, num regime de partilha, que irá permitir que resultados enormes do pré-sal venham para o país e irriguem seus programas sociais. Por trás da proposta de querer acabar com o regime de partilha e voltar para o de concessão, há o apetite visível do grande capital para entrar em cheio nesse programa tão suculento. Os privatistas argumentam que o regime de partilha afugentaria capitais e empresas. Mas já se sabe que a Shell, por exemplo, não pretende reduzir planos de investimentos, dentro do atual regime.
Que falta fazem Leonel Brizola e Darcy Ribeiro, com um profundo sentido do nacional! Felizmente Lula sempre se colocou nessa direção. E Dilma vem da tradição de um primeiro PDT nacionalista, para um PT das conquistas populares e da luta pela soberania nacional.
Entretanto, a campanha contra a Petrobras é feroz. Dia após dia, vem a manchete repetitiva de um dos matutinos: “Escândalos em série”. Tenta-se predizer que “a Petrobras derrete” (O Dia, 16/12). E através das informações da Operação Lava-Jato, que vão transpirando curiosamente em conta-gotas, se quer dessangrar a Petrobras e mostrá-la como uma empresa tendencialmente inviável. Mas atenção. Em primeiro lugar, os escândalos e a gatunagem na Petrobras são antigos. Indica o engenheiro Helio Amorim, conhecedor do problema: “Ao longo de seus sessenta anos não foram poucos os deslizes marcados por propinas e desvios de dinheiro nos mais altos escalões de gestores da empresa”. Fala então de assaltos bilionários. Cita Ancelmo Gois, que listou uma série de casos escabrosos, como quando Jango demitiu, em 1964, às vésperas do golpe, toda a diretoria da Petrobrás, pela negociação de contratos ruinosos. No período FHC, lembra Amorim, foi denunciado e frustrado um contrato de exclusividade com uma das empresas do cartel na petroquímica. Já no governo Lula, a operação Águas Profundas apurou desvios de mais de 200 milhões. Tudo isso não evitou a Petrobras de estar entre as principais empresas a nível internacional.
O importante, nos governos Lula-Dilma, é que temos agora uma enorme liberdade para investigar, denunciar e punir. Nunca se viu antes a prisão de diretores das grandes empreiteiras, a denúncia e encarceramento de dirigentes corruptos da empresa e, logo, começa a vazar uma ainda discutível lista de parlamentares e políticos, surgidos na delação premiada, sujeita ainda a séria comprovação. O governo cria condições, pelo Ministério da Justiça, de ampla liberdade para os promotores, a polícia federal e juízes. O Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, nomeado pela presidência do país, mas com independência funcional, como chefe do Ministério Público, está pedindo a punição de todos os implicados na corrupção e exige rigor e transparência, sugerindo inclusive a demissão de diretores da Petrobras. O abcesso está sendo, em boa hora, lancetado.
Causou espécie o primeiro texto do relator da Comissão Mista do Congresso, o deputado Marco Maia (PT-RS), extremamente vago e que teve de ser refeito, com constrangimento, à luz de denúncias que iam surgindo. Mas a presidenta Dilma declarou que os resultados da apuração da corrupção só podem beneficiar o governo e a Petrobras. Essa profilaxia, longe de enfraquecer a empresa, vai fortalecê-la, livrando-a de quadros corruptos e de ligações criminosas. Faça-se justiça, doa a quem doer. Desse processo sairá uma Petrobras mais robusta, para recuperar sua posição no ranking mundial. O dirigente histórico do PT, Olívio Dutra, como já fizera no tempo do chamado mensalão, pede a expulsão imediata no seu partido, dos implicados na corrupção.
Volta sempre a sombra de 1954. E vale lembrar trechos significativos da carta testamento de Getúlio: “A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se a dos grupos nacionais… (Eu) quis criar a liberdade nacional na potencialização de nossas riquezas através da Petrobras, e mal começou a funcionar, a onda de agitação se avoluma…. Não querem que o trabalhador seja livre. Não querem que o povo seja independente.” Aqui estão, lado a lado, as duas lutas: pelo povo e pela soberania nacional. Não foi a toa que FHC proclamou apressadamente o fim da era Vargas.
Causa espécie ver como se fala pouco da construção da nação e de sua defesa. O governo, a Petrobras e a base de apoio parlamentar estão calados, na defensiva, reagindo a posteriori diante de cada fato que vai aos poucos aparecendo. Essa posição reativa vai sendo intolerável. Lembrei antes, a médio prazo, a criação de uma aliança democrática de esquerda. Mas há uma aliança mais imediata, tendo a Petrobras como referência: uma grande aliança em torno ao tema da defesa da nação. Ivo Lesbaupin escreveu, faz anos, durante o reinado tucano, sobre o desmonte e o sucateamento do país. Ele está sendo reproposto agora, pelo mesmo PSDB. Seu líder no Senado, Aloysio Nunes, protocolou em 19 de dezembro, um projeto para extinguir o regime de partilha no pré-sal, e retornar assim ao regime de concessão de 1997, criado durante o governo de seu partido. Para ele, “ao introduzir o regime de partilha da produção o governo matou nossa galinha de ovos de ouro que é o petróleo do pré-sal”. Ovos de ouro para quem, cara pálida? Ele ameaça com uma fuga de investidores. É para eles que se dirige seu projeto. Não interessaria à nação, mas ao apetite dos capitais internacionais.
É urgente, pois, a criação de uma frente ampla nacionalista, como aquela do começo dos anos sessenta. Para encabeçar com legitimidade essa aliança, seria necessário que o PT fosse refundado, superando um desenho aparelhista, concebido por dirigentes no começo dos anos 2000, com o propósito de apoderar-se do governo. Numa outra direção, sob o comando da presidenta Dilma e com a presença e apoio de Lula, o partido, redescobrindo sua orientação original, além de colocar-se a serviço das grandes causas das políticas sociais como vem fazendo, teria agora que sustentar fortemente a causa nacional. Pode-se ter uma aliança nacionalista ainda mais ampla do que a proposta atrás. Aquela militância que saiu às ruas nas últimas semanas do segundo turno e que foi fator determinante da vitória de Dilma, deveria voltar, numa campanha pela defesa do pré-sal, num grande espectro de alianças. Como mobilizar os estudantes, que teriam que perceber que os ganhos do pré-sal irão para a educação? Infelizmente, os movimentos estudantis não tem aquela legitimidade da UNE no pré-golpe; hoje estão aprisionados e aparelhados dentro de um partido. E como conseguir convocar a juventude em geral, que saiu às ruas em julho do ano passado? Onde está o dinamismo do movimento sindical, em parte cooptado pelo aparelho do estado, como muitos movimentos sociais? Ainda bem que temos um MST sempre vigilante e implacável. Ele poderia estar na base de um grande movimento de defesa da nação ameaçada.
Às vezes, na esquerda, a dimensão nacional não desperta a mesma atenção do que a causa das classes subalternas. Mas na grande história, esta última, depende de termos uma nação independente e livre. O pré-sal poderá dar bases materiais para políticas sociais ainda mais ousadas. E, quem sabe, iniciar medidas para enfrentar as fortes desigualdades que ainda permanecem, num país, infelizmente, com elites atrasadas e tacanhas. A pressão popular e de movimentos sociais e sindicais renovados, pareceria ser, a partir da sociedade, o caminho para vencer as resistências de políticos acomodados.
Por Luiz Alberto Gómez de Sousa (Sociólogo e ex-funcionário das Nações Unidas, é diretor do Programa de Estudos Avançados em Ciência e Religião da Universidade Cândido Mendes)
Fonte: Correio do Brasil
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O clima político atual se parece muito mais com o de 1954 do que com aquele de 1964. Getulio fora eleito em 1950, depois de uma campanha memorável, com 48,73% dos votos válidos, pouco menos da metade. Não tendo alcançado, por pouco, a maioria absoluta, Aliomar Baleeiro, da banda de música da UDN, pediu a anulação das eleições. Ecoavam as diatribes raivosas de Carlos Lacerda, lançadas já antes do pleito: “O senador Getúlio Vargas não deve ser candidato. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse”.
Agora temos um tom mais aveludado com FHC, que indica “a legalidade da vitória (de Dilma), mas sua discutível legitimidade”. E insinua, em palestra na Academia Brasileira de Letras: “dada a situação política e o constrangimento para mudar essa situação, não é de estranhar-se que no Brasil a solução para o imbróglio político não venha a partir do sistema político mas do sistema judicial”. A saída seria uma “judicialização das decisões”. Não um impeachment vindo pelo legislativo, mas uma decisão de fato golpista pelo poder judiciário. Juarez Guimarães, em artigo instigante, desoculta um possível caminho tucano na direção de uma tentativa de golpe. Antes de mais nada, temos que ser claros: não podemos aceitar a ideia de estarmos num terceiro turno. Dilma é a presidenta eleita por mais quatro anos e o candidato que perdeu não passa de um senador da oposição, em que pese um tom azedo e revanchista de quem não digeriu a derrota.
Os três mandatos anteriores, Lula-Dilma, tiveram como resultado uma série de impressionantes programas de inclusão, quando 50 milhões de brasileiros ascenderam na escala social e saíram dos níveis da pobreza. Temos também uma situação de, praticamente, pleno emprego. Isso foi, em parte, um dos fatores da vitória de Dilma e ainda hoje, apesar do torpedeamento implacável da mídia, 50% da população indica a expectativa de que ela terá um desempenho entre ótimo e bom no próximo mandato. Mas falta muito a fazer em áreas como educação, saúde, segurança, etc. Sem falar na necessidade de uma reforma política, uma efetiva reforma agrária e novas demarcações de terras indígenas. Além disso, seria necessário passar da simples inclusão, para reduzir as desigualdades sociais que ainda são enormes.
O recente livro de Thomas Piketty, independentemente de críticas à sua análise, aponta, com dados concretos, o crescimento das desigualdades, que seguirá se não se tomarem medidas concretas, tais como impostos sobre a riqueza. Obama não conseguiu dobrar um congresso conservador, na tributação das grandes fortunas. E aí está o centro do problema: a necessidade de uma reforma fiscal drástica. É difícil pensar isso, num legislativo que terá o continuísmo no Senado de Renan Calheiros e a ameaça de uma presidência da Câmara nas mãos de um Eduardo Cunha, distribuidor de benesses de origem duvidosa. Tarso Genro, em artigo recente, com a lucidez que lhe é própria, fala de criar um novo ponto de equilíbrio, até agora nas mãos do PMDB centrista. E propõe para a frente, uma aliança democrática de esquerda, que atravessaria partidos da atual aliança, incluindo setores de partido como o PSOL, movimentos como o MST, personalidades progressistas como Bresser Pereira, Maria Rita Khell, Pedro Dallari e a própria Marina Silva.
A entrada no governo de Joaquim Levy levanta preocupantes interrogações. Talvez represente agora, o que foi a “Carta ao povo brasileiro” no primeiro governo Lula. Num momento de dificuldades econômicas no país e na conjuntura internacional, sua presença poderia apaziguar um mercado nervoso e volátil, figura de retórica que esconde as jogadas do grande capital e dos especuladores. O importante é que, pela mão firme de Dilma, os avanços sociais não sejam travados por medidas de ortodoxia neoliberal.
Mas quero referir-me a outro elemento, que me parece no momento imediato o mais fundamental. E aqui reencontramos novamente 1954. Venho de uma geração que lutou pelo “o petróleo é nosso”. Num primeiro tempo, estava a afirmação dos setores da direita, de que o Brasil não tinha petróleo em seu solo e teríamos então que depender das grandes empresas internacionais para alimentar o mercado interno. Mas apesar de fortes repressões, em 1936, começou a surgir petróleo em Lobato, no recôncavo baiano. Num belo acaso, fazia lembrar o escritor Monteiro Lobato, que insistia com denodo, na existência de petróleo no país. Na literatura infantil, escreveu o precioso “O poço do visconde”, petróleo jorrando no Sítio do Picapau Amarelo, que líamos na infância e juventude, descobrindo dali a luta nacionalista. Mas com a comprovação de que havia petróleo no Brassil, os então chamados “entreguistas”, tiveram de mudar o discurso e passaram a dizer que não tínhamos competência técnica e seriam as grandes empresas, Esso, Shell, as que poderiam fazer a prospecção e a extração do petróleo.
Em sentido contrário, cresceu uma luta de muitos setores da sociedade, da juventude a setores nacionalistas no Clube Militar. Essa mobilização patriota levou à lei 2004 de 1953, que criou o monopólio estatal de exploração, refino e transporte. E a Petrobras transformou-se, com o correr dos anos, numa das empresas mais importantes e exitosas a nível mundial. É a nona entre as empresas petroleiras. Na lista Forbes das grandes empresas internacionais, aparecia em 10º lugar em 2012 ( caiu para o 30º posto neste ano, em virtude da crise atual, à qual voltarei adiante). O país tornou-se autosuficiente e exportador. Porém esse monopólio foi quebrado no governo FHC, com a Lei do Petróleo 9.478, em 1997, em que o setor privado passou a participar na pesquisa, exploração, extração, refino e distribuição, no regime de concessões. Está integrada, no que Amaury Ribeiro Jr. chamou, “a privataria tucana”.
Mas veio então a tremenda descoberta do pré-sal, abrindo nova dimensão na produção petroleira. Aí, no governo Lula, para esse enorme pré-sal, começou um novo regime de partilha, em que a Petrobras passou a ser a operadora única do pré-sal, num regime no qual o petróleo extraído será do governo, dividindo com empresas que vencerem leilões, parte do óleo obtido nos campos.
E estamos novamente numa luta com semelhanças à do passado. Agora, vem o mote, “o pré-sal tem que ser nosso”. É quando chega uma pressão enorme para mudar a regra da sua exploração. O Globo, de 16 de dezembro, proclama em editorial: “Monopólio de fato do pré-sal não faz sentido”. E um articulista, nesse diário, na véspera, propõe refundar a Petrobras. Não pode deixar de admitir que “a Petrobras tem um quadro técnico altamente qualificado, é detentora de tecnologia de explorar petróleo no mar e possui a quarta reserva de petróleo do mundo”. Só isso já credenciaria o país para manter o monopólio. Porém o autor do texto citado chega a uma conclusão oposta, saída do receituário neoliberal, de crença quase religiosa nas leis do mercado: a Petrobras estaria então preparada para atuar num mercado competitivo, com políticas que incentivariam a concorrência. Mas podemos raciocinar em sentido contrário. Por ter quadros técnicos competentes e tecnologia de exploração em áreas profundas do oceano, pode operar em base estatal, num regime de partilha, que irá permitir que resultados enormes do pré-sal venham para o país e irriguem seus programas sociais. Por trás da proposta de querer acabar com o regime de partilha e voltar para o de concessão, há o apetite visível do grande capital para entrar em cheio nesse programa tão suculento. Os privatistas argumentam que o regime de partilha afugentaria capitais e empresas. Mas já se sabe que a Shell, por exemplo, não pretende reduzir planos de investimentos, dentro do atual regime.
Que falta fazem Leonel Brizola e Darcy Ribeiro, com um profundo sentido do nacional! Felizmente Lula sempre se colocou nessa direção. E Dilma vem da tradição de um primeiro PDT nacionalista, para um PT das conquistas populares e da luta pela soberania nacional.
Entretanto, a campanha contra a Petrobras é feroz. Dia após dia, vem a manchete repetitiva de um dos matutinos: “Escândalos em série”. Tenta-se predizer que “a Petrobras derrete” (O Dia, 16/12). E através das informações da Operação Lava-Jato, que vão transpirando curiosamente em conta-gotas, se quer dessangrar a Petrobras e mostrá-la como uma empresa tendencialmente inviável. Mas atenção. Em primeiro lugar, os escândalos e a gatunagem na Petrobras são antigos. Indica o engenheiro Helio Amorim, conhecedor do problema: “Ao longo de seus sessenta anos não foram poucos os deslizes marcados por propinas e desvios de dinheiro nos mais altos escalões de gestores da empresa”. Fala então de assaltos bilionários. Cita Ancelmo Gois, que listou uma série de casos escabrosos, como quando Jango demitiu, em 1964, às vésperas do golpe, toda a diretoria da Petrobrás, pela negociação de contratos ruinosos. No período FHC, lembra Amorim, foi denunciado e frustrado um contrato de exclusividade com uma das empresas do cartel na petroquímica. Já no governo Lula, a operação Águas Profundas apurou desvios de mais de 200 milhões. Tudo isso não evitou a Petrobras de estar entre as principais empresas a nível internacional.
O importante, nos governos Lula-Dilma, é que temos agora uma enorme liberdade para investigar, denunciar e punir. Nunca se viu antes a prisão de diretores das grandes empreiteiras, a denúncia e encarceramento de dirigentes corruptos da empresa e, logo, começa a vazar uma ainda discutível lista de parlamentares e políticos, surgidos na delação premiada, sujeita ainda a séria comprovação. O governo cria condições, pelo Ministério da Justiça, de ampla liberdade para os promotores, a polícia federal e juízes. O Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, nomeado pela presidência do país, mas com independência funcional, como chefe do Ministério Público, está pedindo a punição de todos os implicados na corrupção e exige rigor e transparência, sugerindo inclusive a demissão de diretores da Petrobras. O abcesso está sendo, em boa hora, lancetado.
Causou espécie o primeiro texto do relator da Comissão Mista do Congresso, o deputado Marco Maia (PT-RS), extremamente vago e que teve de ser refeito, com constrangimento, à luz de denúncias que iam surgindo. Mas a presidenta Dilma declarou que os resultados da apuração da corrupção só podem beneficiar o governo e a Petrobras. Essa profilaxia, longe de enfraquecer a empresa, vai fortalecê-la, livrando-a de quadros corruptos e de ligações criminosas. Faça-se justiça, doa a quem doer. Desse processo sairá uma Petrobras mais robusta, para recuperar sua posição no ranking mundial. O dirigente histórico do PT, Olívio Dutra, como já fizera no tempo do chamado mensalão, pede a expulsão imediata no seu partido, dos implicados na corrupção.
Volta sempre a sombra de 1954. E vale lembrar trechos significativos da carta testamento de Getúlio: “A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se a dos grupos nacionais… (Eu) quis criar a liberdade nacional na potencialização de nossas riquezas através da Petrobras, e mal começou a funcionar, a onda de agitação se avoluma…. Não querem que o trabalhador seja livre. Não querem que o povo seja independente.” Aqui estão, lado a lado, as duas lutas: pelo povo e pela soberania nacional. Não foi a toa que FHC proclamou apressadamente o fim da era Vargas.
Causa espécie ver como se fala pouco da construção da nação e de sua defesa. O governo, a Petrobras e a base de apoio parlamentar estão calados, na defensiva, reagindo a posteriori diante de cada fato que vai aos poucos aparecendo. Essa posição reativa vai sendo intolerável. Lembrei antes, a médio prazo, a criação de uma aliança democrática de esquerda. Mas há uma aliança mais imediata, tendo a Petrobras como referência: uma grande aliança em torno ao tema da defesa da nação. Ivo Lesbaupin escreveu, faz anos, durante o reinado tucano, sobre o desmonte e o sucateamento do país. Ele está sendo reproposto agora, pelo mesmo PSDB. Seu líder no Senado, Aloysio Nunes, protocolou em 19 de dezembro, um projeto para extinguir o regime de partilha no pré-sal, e retornar assim ao regime de concessão de 1997, criado durante o governo de seu partido. Para ele, “ao introduzir o regime de partilha da produção o governo matou nossa galinha de ovos de ouro que é o petróleo do pré-sal”. Ovos de ouro para quem, cara pálida? Ele ameaça com uma fuga de investidores. É para eles que se dirige seu projeto. Não interessaria à nação, mas ao apetite dos capitais internacionais.
É urgente, pois, a criação de uma frente ampla nacionalista, como aquela do começo dos anos sessenta. Para encabeçar com legitimidade essa aliança, seria necessário que o PT fosse refundado, superando um desenho aparelhista, concebido por dirigentes no começo dos anos 2000, com o propósito de apoderar-se do governo. Numa outra direção, sob o comando da presidenta Dilma e com a presença e apoio de Lula, o partido, redescobrindo sua orientação original, além de colocar-se a serviço das grandes causas das políticas sociais como vem fazendo, teria agora que sustentar fortemente a causa nacional. Pode-se ter uma aliança nacionalista ainda mais ampla do que a proposta atrás. Aquela militância que saiu às ruas nas últimas semanas do segundo turno e que foi fator determinante da vitória de Dilma, deveria voltar, numa campanha pela defesa do pré-sal, num grande espectro de alianças. Como mobilizar os estudantes, que teriam que perceber que os ganhos do pré-sal irão para a educação? Infelizmente, os movimentos estudantis não tem aquela legitimidade da UNE no pré-golpe; hoje estão aprisionados e aparelhados dentro de um partido. E como conseguir convocar a juventude em geral, que saiu às ruas em julho do ano passado? Onde está o dinamismo do movimento sindical, em parte cooptado pelo aparelho do estado, como muitos movimentos sociais? Ainda bem que temos um MST sempre vigilante e implacável. Ele poderia estar na base de um grande movimento de defesa da nação ameaçada.
Às vezes, na esquerda, a dimensão nacional não desperta a mesma atenção do que a causa das classes subalternas. Mas na grande história, esta última, depende de termos uma nação independente e livre. O pré-sal poderá dar bases materiais para políticas sociais ainda mais ousadas. E, quem sabe, iniciar medidas para enfrentar as fortes desigualdades que ainda permanecem, num país, infelizmente, com elites atrasadas e tacanhas. A pressão popular e de movimentos sociais e sindicais renovados, pareceria ser, a partir da sociedade, o caminho para vencer as resistências de políticos acomodados.
Por Luiz Alberto Gómez de Sousa (Sociólogo e ex-funcionário das Nações Unidas, é diretor do Programa de Estudos Avançados em Ciência e Religião da Universidade Cândido Mendes)
Fonte: Correio do Brasil
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