quarta-feira, dezembro 31, 2014

Remédio amargo, receita errada

Legislações antidrogas no Brasil tornaram-se cada vez mais repressivas, enchendo as cadeias e criminalizando o usuário

Região de São Paulo conhecida como Cracolândia, pela concentração de usuários da droga.
(ABR / Foto: Marcelo Camargo)

Caso de polícia ou doença mental. Ao longo do século XX, as legislações sobre drogas no Brasil basearam-se em uma perspectiva higienista de saúde pública, apoiada por um forte aparato repressivo. Com o passar do tempo, em vez de se flexibilizarem, tornaram-se ainda mais rigorosas, endurecendo as penas por tráfico. Os impactos dessa política são diversos, mas um deles salta aos olhos: a superlotação das cadeias.

Em 1961, sob influência da Convenção Única sobre Entorpecentes da ONU, o Brasil se comprometeu a lutar contra as drogas punindo quem as produzisse, vendesse e consumisse. No período da ditadura (1964-1985), a Lei de Segurança Nacional adotou uma linha bélica para o combate ao tráfico de drogas, equiparando traficantes aos “subversivos”, todos inimigos do regime. Esta perspectiva levou à militarização da política criminal de drogas e fez surgir o estereótipo do traficante como inimigo interno.

A separação das figuras do consumidor e do traficante – ou seja, entre o “doente” e o “delinquente” – apareceu em uma legislação de 1970. O usuário deveria ser punido com a detenção de 6 meses a 2 anos e pagamento de até 50 dias-multa. A pena era bem maior para quem comercializasse as substâncias ilícitas: reclusão de 3 a 15 anos e pagamento de 50 a 360 dias-multa.

Rigor ainda maior foi estabelecido pela Constituição Federal de 1988, que considerou o tráfico de drogas um crime inafiançável e sem anistia. Dois anos depois o tráfico foi inserido na Lei de Crimes Hediondos, proibindo-se o indulto e a liberdade provisória para quem o cometesse. O impacto dessa lei foi o aumento do encarceramento: mais e mais pessoas passaram a ser presas por tráfico de drogas a partir da década de 1990.

A nova Lei de Drogas, de 2006, anunciava-se como um marco. Pela primeira vez desde os anos 1960, o usuário e o dependente não estariam sujeitos à pena de prisão. Por outro lado, aumentou a pena mínima para o crime de tráfico, que antes era de três anos e, com a nova lei, passou a ser de cinco anos. O resultado foi uma expansão ainda maior do número de pessoas presas por tráfico, multiplicando-se punições desproporcionais e injustas. Em 2006, eram 47.472 presos por tráfico no Brasil, o equivalente a 14% da população carcerária. Seis anos depois, 138.198 detentos estavam nos presídios por conta do mesmo crime – mais de 25% de todos os detidos no país. Ainda que a lei preveja a possibilidade de redução de pena no caso de o acusado ser considerado primário, a maioria deles permanece na cadeia, em média, por pelo menos um ano e oito meses.

Gráfico representa evolução de presos por tráfico de drogas no Brasil
Maria Gorete Marques de Jesus
Em geral, os presos por contrabando de drogas no Brasil são jovens, negros e pobres. O dado reflete a histórica seletividade do sistema de segurança pública e da justiça criminal do país. Usuários são presos como traficantes. Detida em flagrante, a maioria dessas pessoas portava nada mais do que 66 gramas de drogas no bolso, o equivalente a um pacote de queijo ralado. Isto se deve ao fato de a lei não indicar critérios objetivos para a diferenciação entre usuário e traficante. A responsabilidade por essa distinção acaba nas mãos do policial que efetuou a prisão, que deve analisar a quantidade e a qualidade da droga, as circunstâncias sociais e pessoais do suspeito.

A Lei de Drogas que permanece em vigor constitui uma das principais causas do crescimento carcerário brasileiro. A atual política de combate ao tráfico não atinge a estrutura que permite a entrada da droga, sua distribuição e venda no atacado, mas atinge de forma sistemática e cotidiana a venda no varejo.

Um dos principais objetivos da lei é proteger a sociedade e prevenir a prática de atos danosos a ela. Será que a Lei de Drogas tem cumprido este papel? Os modelos de políticas focados na “guerra às drogas” vêm sendo repensados nos últimos anos. Países como Portugal e Uruguai têm mudado suas legislações e adotado políticas de redução de danos, descriminalização e legalização de algumas drogas, visando a uma maior eficácia no enfrentamento ao uso e tráfico de drogas. O caso brasileiro continua em debate, mas ele ainda gira em torno de propostas que objetivam endurecer penas e tratar o usuário como doente, com respostas como a internação compulsória.

Entre nós a discussão ainda é tímida e carregada de preconceitos e tabus, especialmente no âmbito político. Há muita resistência em se pensarem políticas alternativas de redução de danos e formas não repressivas de controle das drogas. Muitos acreditam que a implementação dessas políticas poderia ampliar o consumo de drogas e desencadear outros problemas. Mas o cenário em que vivemos já revela a falência do modelo atual.

Saiba Mais:
CARVALHO, Salo. A política de drogas no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
SHECAIRA, Salomão S. (org.). Drogas: uma nova perspectiva. São Paulo: IBCCRIM, 2014.
FIORE, Mauricio. Uso de “Drogas”: Controvérsias médicas e debate público. São Paulo: Fapesp/Mercado de Letras, 2007.
BOITEUX, Luciana; WIECKO, Ela (coords.) et al. Tráfico de drogas e Constituição. Série Pensando o Direito, n. 1. Brasília: Secretaria de Assuntos Legislativos, Ministério da Justiça, 2009 (http://www.bancodeinjusticas.org.br/wp-content/uploads/2011/11/Minist%C3%A9rio-da-Justi%C3%A7a-UFRJ-e-UnB-Tr%C3%A1fico-de-Drogas-e-Constitui%C3%A7%C3%A3o1.pdf).

Sites:
http://redejusticacriminal.org/

Filmes:
Quebrando o tabu (Fernando Grostein Andrade, 2011) - https://www.youtube.com/watch?v=tKxk61ycAvs

Por Maria Gorete Marques de Jesus - pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP) e coordenadora do livro Prisão provisória e Lei de Drogas: um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo (NEV/USP, 2011).

FONTE: Revista de História.


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Legislações antidrogas no Brasil tornaram-se cada vez mais repressivas, enchendo as cadeias e criminalizando o usuário

Região de São Paulo conhecida como Cracolândia, pela concentração de usuários da droga.
(ABR / Foto: Marcelo Camargo)

Caso de polícia ou doença mental. Ao longo do século XX, as legislações sobre drogas no Brasil basearam-se em uma perspectiva higienista de saúde pública, apoiada por um forte aparato repressivo. Com o passar do tempo, em vez de se flexibilizarem, tornaram-se ainda mais rigorosas, endurecendo as penas por tráfico. Os impactos dessa política são diversos, mas um deles salta aos olhos: a superlotação das cadeias.

Em 1961, sob influência da Convenção Única sobre Entorpecentes da ONU, o Brasil se comprometeu a lutar contra as drogas punindo quem as produzisse, vendesse e consumisse. No período da ditadura (1964-1985), a Lei de Segurança Nacional adotou uma linha bélica para o combate ao tráfico de drogas, equiparando traficantes aos “subversivos”, todos inimigos do regime. Esta perspectiva levou à militarização da política criminal de drogas e fez surgir o estereótipo do traficante como inimigo interno.

A separação das figuras do consumidor e do traficante – ou seja, entre o “doente” e o “delinquente” – apareceu em uma legislação de 1970. O usuário deveria ser punido com a detenção de 6 meses a 2 anos e pagamento de até 50 dias-multa. A pena era bem maior para quem comercializasse as substâncias ilícitas: reclusão de 3 a 15 anos e pagamento de 50 a 360 dias-multa.

Rigor ainda maior foi estabelecido pela Constituição Federal de 1988, que considerou o tráfico de drogas um crime inafiançável e sem anistia. Dois anos depois o tráfico foi inserido na Lei de Crimes Hediondos, proibindo-se o indulto e a liberdade provisória para quem o cometesse. O impacto dessa lei foi o aumento do encarceramento: mais e mais pessoas passaram a ser presas por tráfico de drogas a partir da década de 1990.

A nova Lei de Drogas, de 2006, anunciava-se como um marco. Pela primeira vez desde os anos 1960, o usuário e o dependente não estariam sujeitos à pena de prisão. Por outro lado, aumentou a pena mínima para o crime de tráfico, que antes era de três anos e, com a nova lei, passou a ser de cinco anos. O resultado foi uma expansão ainda maior do número de pessoas presas por tráfico, multiplicando-se punições desproporcionais e injustas. Em 2006, eram 47.472 presos por tráfico no Brasil, o equivalente a 14% da população carcerária. Seis anos depois, 138.198 detentos estavam nos presídios por conta do mesmo crime – mais de 25% de todos os detidos no país. Ainda que a lei preveja a possibilidade de redução de pena no caso de o acusado ser considerado primário, a maioria deles permanece na cadeia, em média, por pelo menos um ano e oito meses.

Gráfico representa evolução de presos por tráfico de drogas no Brasil
Maria Gorete Marques de Jesus
Em geral, os presos por contrabando de drogas no Brasil são jovens, negros e pobres. O dado reflete a histórica seletividade do sistema de segurança pública e da justiça criminal do país. Usuários são presos como traficantes. Detida em flagrante, a maioria dessas pessoas portava nada mais do que 66 gramas de drogas no bolso, o equivalente a um pacote de queijo ralado. Isto se deve ao fato de a lei não indicar critérios objetivos para a diferenciação entre usuário e traficante. A responsabilidade por essa distinção acaba nas mãos do policial que efetuou a prisão, que deve analisar a quantidade e a qualidade da droga, as circunstâncias sociais e pessoais do suspeito.

A Lei de Drogas que permanece em vigor constitui uma das principais causas do crescimento carcerário brasileiro. A atual política de combate ao tráfico não atinge a estrutura que permite a entrada da droga, sua distribuição e venda no atacado, mas atinge de forma sistemática e cotidiana a venda no varejo.

Um dos principais objetivos da lei é proteger a sociedade e prevenir a prática de atos danosos a ela. Será que a Lei de Drogas tem cumprido este papel? Os modelos de políticas focados na “guerra às drogas” vêm sendo repensados nos últimos anos. Países como Portugal e Uruguai têm mudado suas legislações e adotado políticas de redução de danos, descriminalização e legalização de algumas drogas, visando a uma maior eficácia no enfrentamento ao uso e tráfico de drogas. O caso brasileiro continua em debate, mas ele ainda gira em torno de propostas que objetivam endurecer penas e tratar o usuário como doente, com respostas como a internação compulsória.

Entre nós a discussão ainda é tímida e carregada de preconceitos e tabus, especialmente no âmbito político. Há muita resistência em se pensarem políticas alternativas de redução de danos e formas não repressivas de controle das drogas. Muitos acreditam que a implementação dessas políticas poderia ampliar o consumo de drogas e desencadear outros problemas. Mas o cenário em que vivemos já revela a falência do modelo atual.

Saiba Mais:
CARVALHO, Salo. A política de drogas no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
SHECAIRA, Salomão S. (org.). Drogas: uma nova perspectiva. São Paulo: IBCCRIM, 2014.
FIORE, Mauricio. Uso de “Drogas”: Controvérsias médicas e debate público. São Paulo: Fapesp/Mercado de Letras, 2007.
BOITEUX, Luciana; WIECKO, Ela (coords.) et al. Tráfico de drogas e Constituição. Série Pensando o Direito, n. 1. Brasília: Secretaria de Assuntos Legislativos, Ministério da Justiça, 2009 (http://www.bancodeinjusticas.org.br/wp-content/uploads/2011/11/Minist%C3%A9rio-da-Justi%C3%A7a-UFRJ-e-UnB-Tr%C3%A1fico-de-Drogas-e-Constitui%C3%A7%C3%A3o1.pdf).

Sites:
http://redejusticacriminal.org/

Filmes:
Quebrando o tabu (Fernando Grostein Andrade, 2011) - https://www.youtube.com/watch?v=tKxk61ycAvs

Por Maria Gorete Marques de Jesus - pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP) e coordenadora do livro Prisão provisória e Lei de Drogas: um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo (NEV/USP, 2011).

FONTE: Revista de História.


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