Legislações antidrogas no Brasil tornaram-se cada vez mais repressivas, enchendo as cadeias e criminalizando o usuário
Região de São Paulo conhecida como Cracolândia, pela concentração de usuários da droga. (ABR / Foto: Marcelo Camargo) |
Caso de polícia ou doença mental. Ao longo do século XX, as legislações sobre drogas no Brasil basearam-se em uma perspectiva higienista de saúde pública, apoiada por um forte aparato repressivo. Com o passar do tempo, em vez de se flexibilizarem, tornaram-se ainda mais rigorosas, endurecendo as penas por tráfico. Os impactos dessa política são diversos, mas um deles salta aos olhos: a superlotação das cadeias.
Em 1961, sob influência da Convenção Única sobre Entorpecentes da ONU, o Brasil se comprometeu a lutar contra as drogas punindo quem as produzisse, vendesse e consumisse. No período da ditadura (1964-1985), a Lei de Segurança Nacional adotou uma linha bélica para o combate ao tráfico de drogas, equiparando traficantes aos “subversivos”, todos inimigos do regime. Esta perspectiva levou à militarização da política criminal de drogas e fez surgir o estereótipo do traficante como inimigo interno.
A separação das figuras do consumidor e do traficante – ou seja, entre o “doente” e o “delinquente” – apareceu em uma legislação de 1970. O usuário deveria ser punido com a detenção de 6 meses a 2 anos e pagamento de até 50 dias-multa. A pena era bem maior para quem comercializasse as substâncias ilícitas: reclusão de 3 a 15 anos e pagamento de 50 a 360 dias-multa.
Rigor ainda maior foi estabelecido pela Constituição Federal de 1988, que considerou o tráfico de drogas um crime inafiançável e sem anistia. Dois anos depois o tráfico foi inserido na Lei de Crimes Hediondos, proibindo-se o indulto e a liberdade provisória para quem o cometesse. O impacto dessa lei foi o aumento do encarceramento: mais e mais pessoas passaram a ser presas por tráfico de drogas a partir da década de 1990.
A nova Lei de Drogas, de 2006, anunciava-se como um marco. Pela primeira vez desde os anos 1960, o usuário e o dependente não estariam sujeitos à pena de prisão. Por outro lado, aumentou a pena mínima para o crime de tráfico, que antes era de três anos e, com a nova lei, passou a ser de cinco anos. O resultado foi uma expansão ainda maior do número de pessoas presas por tráfico, multiplicando-se punições desproporcionais e injustas. Em 2006, eram 47.472 presos por tráfico no Brasil, o equivalente a 14% da população carcerária. Seis anos depois, 138.198 detentos estavam nos presídios por conta do mesmo crime – mais de 25% de todos os detidos no país. Ainda que a lei preveja a possibilidade de redução de pena no caso de o acusado ser considerado primário, a maioria deles permanece na cadeia, em média, por pelo menos um ano e oito meses.
Gráfico representa evolução de presos por tráfico de drogas no Brasil Maria Gorete Marques de Jesus |
A Lei de Drogas que permanece em vigor constitui uma das principais causas do crescimento carcerário brasileiro. A atual política de combate ao tráfico não atinge a estrutura que permite a entrada da droga, sua distribuição e venda no atacado, mas atinge de forma sistemática e cotidiana a venda no varejo.
Um dos principais objetivos da lei é proteger a sociedade e prevenir a prática de atos danosos a ela. Será que a Lei de Drogas tem cumprido este papel? Os modelos de políticas focados na “guerra às drogas” vêm sendo repensados nos últimos anos. Países como Portugal e Uruguai têm mudado suas legislações e adotado políticas de redução de danos, descriminalização e legalização de algumas drogas, visando a uma maior eficácia no enfrentamento ao uso e tráfico de drogas. O caso brasileiro continua em debate, mas ele ainda gira em torno de propostas que objetivam endurecer penas e tratar o usuário como doente, com respostas como a internação compulsória.
Entre nós a discussão ainda é tímida e carregada de preconceitos e tabus, especialmente no âmbito político. Há muita resistência em se pensarem políticas alternativas de redução de danos e formas não repressivas de controle das drogas. Muitos acreditam que a implementação dessas políticas poderia ampliar o consumo de drogas e desencadear outros problemas. Mas o cenário em que vivemos já revela a falência do modelo atual.
Saiba Mais:
CARVALHO, Salo. A política de drogas no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
SHECAIRA, Salomão S. (org.). Drogas: uma nova perspectiva. São Paulo: IBCCRIM, 2014.
FIORE, Mauricio. Uso de “Drogas”: Controvérsias médicas e debate público. São Paulo: Fapesp/Mercado de Letras, 2007.
BOITEUX, Luciana; WIECKO, Ela (coords.) et al. Tráfico de drogas e Constituição. Série Pensando o Direito, n. 1. Brasília: Secretaria de Assuntos Legislativos, Ministério da Justiça, 2009 (http://www.bancodeinjusticas.org.br/wp-content/uploads/2011/11/Minist%C3%A9rio-da-Justi%C3%A7a-UFRJ-e-UnB-Tr%C3%A1fico-de-Drogas-e-Constitui%C3%A7%C3%A3o1.pdf).
Sites:
http://redejusticacriminal.org/
Filmes:
Quebrando o tabu (Fernando Grostein Andrade, 2011) - https://www.youtube.com/watch?v=tKxk61ycAvs
Por Maria Gorete Marques de Jesus - pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP) e coordenadora do livro Prisão provisória e Lei de Drogas: um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo (NEV/USP, 2011).
CARVALHO, Salo. A política de drogas no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
SHECAIRA, Salomão S. (org.). Drogas: uma nova perspectiva. São Paulo: IBCCRIM, 2014.
FIORE, Mauricio. Uso de “Drogas”: Controvérsias médicas e debate público. São Paulo: Fapesp/Mercado de Letras, 2007.
BOITEUX, Luciana; WIECKO, Ela (coords.) et al. Tráfico de drogas e Constituição. Série Pensando o Direito, n. 1. Brasília: Secretaria de Assuntos Legislativos, Ministério da Justiça, 2009 (http://www.bancodeinjusticas.org.br/wp-content/uploads/2011/11/Minist%C3%A9rio-da-Justi%C3%A7a-UFRJ-e-UnB-Tr%C3%A1fico-de-Drogas-e-Constitui%C3%A7%C3%A3o1.pdf).
Sites:
http://redejusticacriminal.org/
Filmes:
Quebrando o tabu (Fernando Grostein Andrade, 2011) - https://www.youtube.com/watch?v=tKxk61ycAvs
Por Maria Gorete Marques de Jesus - pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP) e coordenadora do livro Prisão provisória e Lei de Drogas: um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo (NEV/USP, 2011).
FONTE: Revista de História.
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Legislações antidrogas no Brasil tornaram-se cada vez mais repressivas, enchendo as cadeias e criminalizando o usuário
Região de São Paulo conhecida como Cracolândia, pela concentração de usuários da droga. (ABR / Foto: Marcelo Camargo) |
Caso de polícia ou doença mental. Ao longo do século XX, as legislações sobre drogas no Brasil basearam-se em uma perspectiva higienista de saúde pública, apoiada por um forte aparato repressivo. Com o passar do tempo, em vez de se flexibilizarem, tornaram-se ainda mais rigorosas, endurecendo as penas por tráfico. Os impactos dessa política são diversos, mas um deles salta aos olhos: a superlotação das cadeias.
Em 1961, sob influência da Convenção Única sobre Entorpecentes da ONU, o Brasil se comprometeu a lutar contra as drogas punindo quem as produzisse, vendesse e consumisse. No período da ditadura (1964-1985), a Lei de Segurança Nacional adotou uma linha bélica para o combate ao tráfico de drogas, equiparando traficantes aos “subversivos”, todos inimigos do regime. Esta perspectiva levou à militarização da política criminal de drogas e fez surgir o estereótipo do traficante como inimigo interno.
A separação das figuras do consumidor e do traficante – ou seja, entre o “doente” e o “delinquente” – apareceu em uma legislação de 1970. O usuário deveria ser punido com a detenção de 6 meses a 2 anos e pagamento de até 50 dias-multa. A pena era bem maior para quem comercializasse as substâncias ilícitas: reclusão de 3 a 15 anos e pagamento de 50 a 360 dias-multa.
Rigor ainda maior foi estabelecido pela Constituição Federal de 1988, que considerou o tráfico de drogas um crime inafiançável e sem anistia. Dois anos depois o tráfico foi inserido na Lei de Crimes Hediondos, proibindo-se o indulto e a liberdade provisória para quem o cometesse. O impacto dessa lei foi o aumento do encarceramento: mais e mais pessoas passaram a ser presas por tráfico de drogas a partir da década de 1990.
A nova Lei de Drogas, de 2006, anunciava-se como um marco. Pela primeira vez desde os anos 1960, o usuário e o dependente não estariam sujeitos à pena de prisão. Por outro lado, aumentou a pena mínima para o crime de tráfico, que antes era de três anos e, com a nova lei, passou a ser de cinco anos. O resultado foi uma expansão ainda maior do número de pessoas presas por tráfico, multiplicando-se punições desproporcionais e injustas. Em 2006, eram 47.472 presos por tráfico no Brasil, o equivalente a 14% da população carcerária. Seis anos depois, 138.198 detentos estavam nos presídios por conta do mesmo crime – mais de 25% de todos os detidos no país. Ainda que a lei preveja a possibilidade de redução de pena no caso de o acusado ser considerado primário, a maioria deles permanece na cadeia, em média, por pelo menos um ano e oito meses.
Gráfico representa evolução de presos por tráfico de drogas no Brasil Maria Gorete Marques de Jesus |
A Lei de Drogas que permanece em vigor constitui uma das principais causas do crescimento carcerário brasileiro. A atual política de combate ao tráfico não atinge a estrutura que permite a entrada da droga, sua distribuição e venda no atacado, mas atinge de forma sistemática e cotidiana a venda no varejo.
Um dos principais objetivos da lei é proteger a sociedade e prevenir a prática de atos danosos a ela. Será que a Lei de Drogas tem cumprido este papel? Os modelos de políticas focados na “guerra às drogas” vêm sendo repensados nos últimos anos. Países como Portugal e Uruguai têm mudado suas legislações e adotado políticas de redução de danos, descriminalização e legalização de algumas drogas, visando a uma maior eficácia no enfrentamento ao uso e tráfico de drogas. O caso brasileiro continua em debate, mas ele ainda gira em torno de propostas que objetivam endurecer penas e tratar o usuário como doente, com respostas como a internação compulsória.
Entre nós a discussão ainda é tímida e carregada de preconceitos e tabus, especialmente no âmbito político. Há muita resistência em se pensarem políticas alternativas de redução de danos e formas não repressivas de controle das drogas. Muitos acreditam que a implementação dessas políticas poderia ampliar o consumo de drogas e desencadear outros problemas. Mas o cenário em que vivemos já revela a falência do modelo atual.
Saiba Mais:
CARVALHO, Salo. A política de drogas no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
SHECAIRA, Salomão S. (org.). Drogas: uma nova perspectiva. São Paulo: IBCCRIM, 2014.
FIORE, Mauricio. Uso de “Drogas”: Controvérsias médicas e debate público. São Paulo: Fapesp/Mercado de Letras, 2007.
BOITEUX, Luciana; WIECKO, Ela (coords.) et al. Tráfico de drogas e Constituição. Série Pensando o Direito, n. 1. Brasília: Secretaria de Assuntos Legislativos, Ministério da Justiça, 2009 (http://www.bancodeinjusticas.org.br/wp-content/uploads/2011/11/Minist%C3%A9rio-da-Justi%C3%A7a-UFRJ-e-UnB-Tr%C3%A1fico-de-Drogas-e-Constitui%C3%A7%C3%A3o1.pdf).
Sites:
http://redejusticacriminal.org/
Filmes:
Quebrando o tabu (Fernando Grostein Andrade, 2011) - https://www.youtube.com/watch?v=tKxk61ycAvs
Por Maria Gorete Marques de Jesus - pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP) e coordenadora do livro Prisão provisória e Lei de Drogas: um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo (NEV/USP, 2011).
CARVALHO, Salo. A política de drogas no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
SHECAIRA, Salomão S. (org.). Drogas: uma nova perspectiva. São Paulo: IBCCRIM, 2014.
FIORE, Mauricio. Uso de “Drogas”: Controvérsias médicas e debate público. São Paulo: Fapesp/Mercado de Letras, 2007.
BOITEUX, Luciana; WIECKO, Ela (coords.) et al. Tráfico de drogas e Constituição. Série Pensando o Direito, n. 1. Brasília: Secretaria de Assuntos Legislativos, Ministério da Justiça, 2009 (http://www.bancodeinjusticas.org.br/wp-content/uploads/2011/11/Minist%C3%A9rio-da-Justi%C3%A7a-UFRJ-e-UnB-Tr%C3%A1fico-de-Drogas-e-Constitui%C3%A7%C3%A3o1.pdf).
Sites:
http://redejusticacriminal.org/
Filmes:
Quebrando o tabu (Fernando Grostein Andrade, 2011) - https://www.youtube.com/watch?v=tKxk61ycAvs
Por Maria Gorete Marques de Jesus - pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP) e coordenadora do livro Prisão provisória e Lei de Drogas: um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo (NEV/USP, 2011).
FONTE: Revista de História.
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