Engenho e arquitetura (I)
Publicado em 09.07.2006
A literatura sobre a civilização do açúcar, no Nordeste do Brasil, é muito rica, dela faz parte uma série de livros que direta ou indiretamente trata do assunto. O mais famoso, talvez, seja “Casa Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre, mas, além deste, que aborda a civilização açucareira enfocando sobretudo o seu aspecto antropológico, há os que enfatizam os aspectos ecológicos, os econômicos, históricos, sociológicos, geográficos ou literários. Os extensos canaviais e os engenhos sempre marcaram a paisagem como o ideário nordestino, de modo geral, e o pernambucano em particular. A partir deste ideário formaram-se figuras mitológicas, como a do menino de engenho, a do senhor de engenho e das sinhazinhas. O mito do menino de engenho surgiu a partir da idealização de Joaquim Nabuco, que viveu parte de sua infância em “Massangana” e escreveu o “Minha formação”, a do conselheiro João Alfredo, que lembrou sua infância no Uruaé em “Minha Meninice”, e de José Lins do Rego, com o seu “Menino de engenho”, vivendo no corredor, propriedade de seu avô, que ele batizou de Santa Rosa. O mito do senhor de engenho é visto ora como homem destemido que lutou nos primeiros anos contra o inimigo comum, os holandeses, e contra o poder central, nas revoltas de 1817, de 1824 e de 1848, defendendo o regionalismo e a liberdade, e ora como homem que impunha sua vontade e que explorava a massa escrava sob sua dependência e jurisdição. Para o público, de um modo geral, ele hoje é encarado com mais simpatia que o usineiro, seu sucessor, senhor de muitas terras, sem escravos, mas senhor de muitos homens. Tanto isto é verdade que na primeira metade do século 20, o maior usineiro de Pernambuco, o industrial Costa Azevedo, o famoso “Tenente da Catende”, gostava de ser chamado de “senhor de engenho”.
O livro de Geraldo Gomes da Silva, “Engenho e Arquitetura”, veio juntar-se a todos estes que têm a civilização açucareira como tema.
Trata-se de um ensaio que compreende quatro extensos capítulos onde aborda, inicialmente, a história da produção do açúcar no Novo Mundo, ou no Nordeste do Brasil e, em seguida, a arquitetura que marcou a paisagem dos engenhos, já desaparecidos, passando para a tipologia dos edifícios dos engenhos e, finalmente, para a natureza e as origens da arquitetura dos antigos engenhos pernambucanos. Para esta análise, longa e cuidadosa, o autor utilizou longamente a iconografia, a partir de quadros e fotografias, aos quais acrescentou desenhos de plantas de casas grandes, de capelas e de fábricas de açúcar, utilizando uma bibliografia rica, desde depoimentos de cronistas coloniais, livros de história do Brasil em vários períodos históricos, até poesias de Ascenso Ferreira. Os quadros de Post, do período holandês, foram de grande valia ao arquiteto/historiador.
Ao lado do texto, muito bem escrito, das informações que transmite, utilizando fontes de grande valor histórico, como os estudos do francês L. L. Vauthier, o livro é ilustrado com dezenas de fotos, muitas delas do próprio autor, que, além de arquiteto, é um excelente fotógrafo, nelas podemos visualizar a evolução da paisagem açucareira, desde as casas grandes do século 16, construídas em grande parte de taipa, parecendo verdadeiras fortalezas, como a de Megaípe, até as que lembram a arquitetura colonial inglesa, da Índia e da África, construídas a partir dos fins do século 19, sem falar nas construções com cobertura em quatro águas, bem portuguesas.
Na arquitetura dos engenhos de Pernambuco, havia o domínio de um tripé: a casa grande, residência do proprietário de terras e de escravos, situada, em geral, na meia encosta, a capela, atestando a fidelidade a Deus ou ao santo de sua veneração, no alto ou também na encosta da colina, e o engenho, a “Moita”, quase sempre na margem do rio, mostrando a sua dependência da água, vinham depois as senzalas habitadas pelos escravos.
Engenho e arquitetura (II)
Publicado em 16.07.2006
Grande era o contraste entre as casa-grandes e as senzalas, não só no estilo da construção, as casas grandes possuíam paredes muito espessas tanto para defendê-las de ataques dos inimigos como da inclemência do clima, muito quente e úmido. Tinham alpendres ora mais ora menos amplos, fornecendo a sombra tão necessária nos trópicos. Os alpendres, ou varandas, eram o lugar ideal para se colocarem as redes e as preguiçosas para a sesta da tarde, e de onde davam as ordens aos escravos e aos empregados. Casos havia em que o senhor falava aos escravos de uma janela ou de um terraço no primeiro andar, para evitar uma aproximação maior com os mesmos.
O autor mostra a evolução arquitetônica das casas grandes, que, inicialmente construídas de taipa e de adobe, passaram depois para construções mais sólidas de alvenaria, usando tijolos de grande tamanho e peso, como as que ele encontrou no engenho Tamataúpe de Flores.
As senzalas eram feitas sempre de taipa e formavam um arruado de casas contíguas, com uma só entrada, a fim de facilitar a vigilância dos feitores sobre os negros. Esse tipo de construção foi encontrado, em pequeno número, pelo autor, no engenho Uruaé, no município de Condado, de vez que elas já haviam sido destruídas pelo tempo.
As capelas são encontradas ainda em grande número, apesar de muitas delas terem desaparecido, à proporção que o processo usineiro se expandiu, os engenhos foram parando suas atividades industriais e os proprietários foram substituídos por rendeiros ou administradores. Entre elas encontram-se algumas de pequena dimensão, ao lado de outras que lembram, pelo tamanho e imponência, verdadeiras catedrais. Umas possuem escadas externas, como a do engenho Miranda, outras possuem alpendres em frente, como a do engenho Garapu, no Cabo de Santo Agostinho, ou a do povoado de Santo Amaro de Sirinhaém, no município de mesmo nome. Seriam esses alpendres o resultado da influência indiana, oriental?
As casas grandes refletiam a importância econômica e o poder dos proprietários, diante do fausto e do tamanho que apresentavam, existem ou existiam, e Geraldo Gomes bem demonstra isso, os grandes sobrados, como os dos engenhos Noruega e Guerra, enquanto outras eram pequenos chalés ou casas com telhados em quatro águas, umas cercadas por grandes alpendres, como as de Nova Vida, em Aliança, e de Abreu, em Tracunhaém, enquanto outras eram quase desprovidas de alpendres, como a de Ribeira, em Vicência.
De um modo geral, elas assinalavam o grau de riqueza e de poder do proprietário de engenho. Algumas delas foram absorvidas pelo processo de urbanização, passando a se integrar à paisagem urbana, como as da Madalena e da Torre, no Recife, e o chalé da usina Catende na cidade do mesmo nome.
Como se pode ver, este é um livro marcante na historiografia, sobretudo da arte e da sociologia do Nordeste, e deve ter a maior difusão, ser objeto de análise e de estudo em seminários, em congressos e em aulas, por todos aqueles que se interessam pela formação histórica dos engenhos de Pernambuco. Ele se constitui, além de excelente leitura, um livro de formação para os que quiserem conhecer, sem preconceitos, a realidade nordestina e brasileira, estando à altura de numerosas obras que foram escritas por nordestinos ilustres, como Josué de Castro, em sua Geografia da fome, Manuel Diégues Junior, no Bangüê nas Alagoas, José Lins do Rego, em Usina, João Cabral de Melo Neto em Morte e vida severina, e o próprio Gilberto Freyre, em Nordeste.
Ele enriquece uma literatura que já é tão rica e tão importante como a civilização que ele analisa, além de estar profusamente documentado com numerosas ilustrações que permitem ao leitor visualizar e testar o que está escrito como o que está ilustrado.
Manuel Correia de Andrade, historiador e geógrafo, é da APL.
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Engenho e arquitetura (I)
Publicado em 09.07.2006
A literatura sobre a civilização do açúcar, no Nordeste do Brasil, é muito rica, dela faz parte uma série de livros que direta ou indiretamente trata do assunto. O mais famoso, talvez, seja “Casa Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre, mas, além deste, que aborda a civilização açucareira enfocando sobretudo o seu aspecto antropológico, há os que enfatizam os aspectos ecológicos, os econômicos, históricos, sociológicos, geográficos ou literários. Os extensos canaviais e os engenhos sempre marcaram a paisagem como o ideário nordestino, de modo geral, e o pernambucano em particular. A partir deste ideário formaram-se figuras mitológicas, como a do menino de engenho, a do senhor de engenho e das sinhazinhas. O mito do menino de engenho surgiu a partir da idealização de Joaquim Nabuco, que viveu parte de sua infância em “Massangana” e escreveu o “Minha formação”, a do conselheiro João Alfredo, que lembrou sua infância no Uruaé em “Minha Meninice”, e de José Lins do Rego, com o seu “Menino de engenho”, vivendo no corredor, propriedade de seu avô, que ele batizou de Santa Rosa. O mito do senhor de engenho é visto ora como homem destemido que lutou nos primeiros anos contra o inimigo comum, os holandeses, e contra o poder central, nas revoltas de 1817, de 1824 e de 1848, defendendo o regionalismo e a liberdade, e ora como homem que impunha sua vontade e que explorava a massa escrava sob sua dependência e jurisdição. Para o público, de um modo geral, ele hoje é encarado com mais simpatia que o usineiro, seu sucessor, senhor de muitas terras, sem escravos, mas senhor de muitos homens. Tanto isto é verdade que na primeira metade do século 20, o maior usineiro de Pernambuco, o industrial Costa Azevedo, o famoso “Tenente da Catende”, gostava de ser chamado de “senhor de engenho”.
O livro de Geraldo Gomes da Silva, “Engenho e Arquitetura”, veio juntar-se a todos estes que têm a civilização açucareira como tema.
Trata-se de um ensaio que compreende quatro extensos capítulos onde aborda, inicialmente, a história da produção do açúcar no Novo Mundo, ou no Nordeste do Brasil e, em seguida, a arquitetura que marcou a paisagem dos engenhos, já desaparecidos, passando para a tipologia dos edifícios dos engenhos e, finalmente, para a natureza e as origens da arquitetura dos antigos engenhos pernambucanos. Para esta análise, longa e cuidadosa, o autor utilizou longamente a iconografia, a partir de quadros e fotografias, aos quais acrescentou desenhos de plantas de casas grandes, de capelas e de fábricas de açúcar, utilizando uma bibliografia rica, desde depoimentos de cronistas coloniais, livros de história do Brasil em vários períodos históricos, até poesias de Ascenso Ferreira. Os quadros de Post, do período holandês, foram de grande valia ao arquiteto/historiador.
Ao lado do texto, muito bem escrito, das informações que transmite, utilizando fontes de grande valor histórico, como os estudos do francês L. L. Vauthier, o livro é ilustrado com dezenas de fotos, muitas delas do próprio autor, que, além de arquiteto, é um excelente fotógrafo, nelas podemos visualizar a evolução da paisagem açucareira, desde as casas grandes do século 16, construídas em grande parte de taipa, parecendo verdadeiras fortalezas, como a de Megaípe, até as que lembram a arquitetura colonial inglesa, da Índia e da África, construídas a partir dos fins do século 19, sem falar nas construções com cobertura em quatro águas, bem portuguesas.
Na arquitetura dos engenhos de Pernambuco, havia o domínio de um tripé: a casa grande, residência do proprietário de terras e de escravos, situada, em geral, na meia encosta, a capela, atestando a fidelidade a Deus ou ao santo de sua veneração, no alto ou também na encosta da colina, e o engenho, a “Moita”, quase sempre na margem do rio, mostrando a sua dependência da água, vinham depois as senzalas habitadas pelos escravos.
Engenho e arquitetura (II)
Publicado em 16.07.2006
Grande era o contraste entre as casa-grandes e as senzalas, não só no estilo da construção, as casas grandes possuíam paredes muito espessas tanto para defendê-las de ataques dos inimigos como da inclemência do clima, muito quente e úmido. Tinham alpendres ora mais ora menos amplos, fornecendo a sombra tão necessária nos trópicos. Os alpendres, ou varandas, eram o lugar ideal para se colocarem as redes e as preguiçosas para a sesta da tarde, e de onde davam as ordens aos escravos e aos empregados. Casos havia em que o senhor falava aos escravos de uma janela ou de um terraço no primeiro andar, para evitar uma aproximação maior com os mesmos.
O autor mostra a evolução arquitetônica das casas grandes, que, inicialmente construídas de taipa e de adobe, passaram depois para construções mais sólidas de alvenaria, usando tijolos de grande tamanho e peso, como as que ele encontrou no engenho Tamataúpe de Flores.
As senzalas eram feitas sempre de taipa e formavam um arruado de casas contíguas, com uma só entrada, a fim de facilitar a vigilância dos feitores sobre os negros. Esse tipo de construção foi encontrado, em pequeno número, pelo autor, no engenho Uruaé, no município de Condado, de vez que elas já haviam sido destruídas pelo tempo.
As capelas são encontradas ainda em grande número, apesar de muitas delas terem desaparecido, à proporção que o processo usineiro se expandiu, os engenhos foram parando suas atividades industriais e os proprietários foram substituídos por rendeiros ou administradores. Entre elas encontram-se algumas de pequena dimensão, ao lado de outras que lembram, pelo tamanho e imponência, verdadeiras catedrais. Umas possuem escadas externas, como a do engenho Miranda, outras possuem alpendres em frente, como a do engenho Garapu, no Cabo de Santo Agostinho, ou a do povoado de Santo Amaro de Sirinhaém, no município de mesmo nome. Seriam esses alpendres o resultado da influência indiana, oriental?
As casas grandes refletiam a importância econômica e o poder dos proprietários, diante do fausto e do tamanho que apresentavam, existem ou existiam, e Geraldo Gomes bem demonstra isso, os grandes sobrados, como os dos engenhos Noruega e Guerra, enquanto outras eram pequenos chalés ou casas com telhados em quatro águas, umas cercadas por grandes alpendres, como as de Nova Vida, em Aliança, e de Abreu, em Tracunhaém, enquanto outras eram quase desprovidas de alpendres, como a de Ribeira, em Vicência.
De um modo geral, elas assinalavam o grau de riqueza e de poder do proprietário de engenho. Algumas delas foram absorvidas pelo processo de urbanização, passando a se integrar à paisagem urbana, como as da Madalena e da Torre, no Recife, e o chalé da usina Catende na cidade do mesmo nome.
Como se pode ver, este é um livro marcante na historiografia, sobretudo da arte e da sociologia do Nordeste, e deve ter a maior difusão, ser objeto de análise e de estudo em seminários, em congressos e em aulas, por todos aqueles que se interessam pela formação histórica dos engenhos de Pernambuco. Ele se constitui, além de excelente leitura, um livro de formação para os que quiserem conhecer, sem preconceitos, a realidade nordestina e brasileira, estando à altura de numerosas obras que foram escritas por nordestinos ilustres, como Josué de Castro, em sua Geografia da fome, Manuel Diégues Junior, no Bangüê nas Alagoas, José Lins do Rego, em Usina, João Cabral de Melo Neto em Morte e vida severina, e o próprio Gilberto Freyre, em Nordeste.
Ele enriquece uma literatura que já é tão rica e tão importante como a civilização que ele analisa, além de estar profusamente documentado com numerosas ilustrações que permitem ao leitor visualizar e testar o que está escrito como o que está ilustrado.
Manuel Correia de Andrade, historiador e geógrafo, é da APL.
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