domingo, dezembro 30, 2012

A Ampliação do Conceito de Patrimônio Cultural Pós-1970.

Eis um excelente texto escrito por Matheus Blach para o site Sobre História que trata sobre a construção do conceito de Patrimônio Cultural, iniciado no Brasil a partir da década de 1970. Segundo o autor, desse período em diante, o debate a respeito da valorização do patrimônio cultural passou por mudanças significativas. Foi nesse momento em que foi incorporada a noção de patrimônio imaterial, paralelo a tradicional concepção materialista. Com isso, houve uma notável ampliação de valores e as diferentes visões provenientes de vários outros agentes sociais, como população, Estado e intelectualidade, passaram a ser incorporadas a esse debate.

Além disso, o autor trabalha de forma breve, mas com propriedade, a relação construída entre o patrimônio cultural e a indústria do turismo durante os anos de 1990,  tendo em vista a valorização de um caráter "fachadista" para o patrimônio cultural e voltado tipicamente para  os interesses comerciais e também a institucionalização dessa temática na legislação brasileira.

Uma boa leitura!


O IPHAN na Contemporaneidade: A Ampliação do Conceito de Patrimônio Cultural Pós-1970

Leonardo Castriota (2009) aponta que a definição do que é tradicional se vincula aos aspectos da vida cotidiana que são herdados de gerações passadas, como ritos, técnicas, arte, costumes, linguagem, ou seja, no sentido mais imediato e abrangente da palavra, a cultura. Entretanto, apesar de as tradições estarem essencialmente ligadas às permanências do passado, desempenhando um papel de legitimação de atos do presente, têm manifestas em si uma “força ativamente modeladora, uma dimensão que em última instância, vai lhe garantir certa plasticidade” (CASTRIOTA, 2009, pp. 21-22). Isso se torna mais expressivo devido à expansão visível do fenômeno da globalização e do sistema capitalista que, segundo o autor, aceleram a dinâmica de transformação da cultura nas sociedades e modificam os vínculos existentes entre diferentes gerações, levando a um processo de ruptura cada vez mais veloz entre as mesmas.

Por outro lado, este mesmo fenômeno leva, conforme demonstra Castriota (2009), a um “contramovimento” em que as culturas locais reaparecem ganhando novo sentido. Desse modo concomitantemente à “crise das tradições” ocorrida na contemporaneidade, surge a necessidade do patrimônio histórico. Já após o fim da Segunda Guerra Mundial, os inventários de bens patrimoniais haviam se multiplicado e novas ferramentas de preservação surgiram para englobar, no panteão memorial das sociedades ocidentais, outras formas de arquitetura, arte e cultura que antes haviam sido “esquecidas”.

Assim, o termo patrimônio passa por uma considerável ampliação de seu sentido, sobretudo diante das contribuições da reformulação do olhar acadêmico das Ciências Sociais, no qual despertou o interesse por novos objetos, sujeitos sociais e temáticas culturais antes mantidos à margem da sociedade e das políticas de preservação.

Desde então, foi possível elevar à categoria de patrimônio da humanidade ou da nação, elementos que – na visão mais tradicional do conceito eram descartados – como danças típicas, ritos, expressões religiosas, além de práticas cotidianas de reprodução da cultura e da vida. No Brasil, como afirma Maria Cecília Londres Fonseca (2012), apesar de já existirem projetos para abordagens mais abrangentes do conceito de patrimônio, como a de Mário de Andrade, tal perspectiva se desenvolve tardiamente a partir dos anos 1970.

Desse modo, a autora visualiza que a partir dos anos 1970 as práticas patrimoniais no Brasil passam por uma sistemática revisão, sofrendo mudanças significativas em sua orientação em voga desde 1937. A partir dessas transformações, em sintonia com as novas perspectivas que permeavam o campo da História, das Ciências Sociais – sobretudo a Antropologia – como também da moda, design, indústria e informática, foi possível incorporar à noção de Patrimônio Histórico o conceito de cultura. O Patrimônio Cultural passou a abarcar bens patrimoniais de natureza material e imaterial.

Entretanto, o cumprimento do preceito constitucional implica regulamentação no que diz respeito à preservação dos bens culturais de natureza imaterial, para os quais instrumentos de proteção de caráter restritivo, como é o tombamento, são inadequados. É preciso criar formas de identificação e de apoio que, sem tolher ou congelar essas manifestações culturais, nem aprisioná-las a valores discutíveis como o de autenticidade, favoreçam sua continuidade. (FONSECA, 2012. p. 112)

A partir disto é que será proposta a noção de Referência Cultural no sentido de construir os Inventários Nacionais de Referências Culturais (INRC). De acordo com Fonseca (2012), esta noção se desenvolve a partir de uma concepção antropológica de cultura em que são privilegiados os aspectos de pluralidade e diversidade culturais ligados não somente a produção e reprodução da vida humana no seu caráter material, mas, sobretudo ligados aos sentidos, significados, símbolos, subjetividades e valores associados às práticas sociais e bens imateriais.

Embora essas informações só possam ser apreendidas a partir de manifestações materiais, ou suportes − sítios, monumentos, conjuntos urbanos, artefatos, relatos, ritos, práticas, etc. − só se constituem como referências culturais quando são consideradas e valorizadas enquanto marcas distintivas por sujeitos definidos. (FONSECA, 2012. p. 112)

Sendo assim, a construção das narrativas e discursos de valorização daquilo que se pretenderia nomear como patrimônio nacional, passaria a ser uma elaboração conjunta entre os diversos sujeitos históricos envolvidos no processo de proteção. Neste discurso renovado das práticas patrimoniais, a comunidade local, pelo menos teoricamente, passa a participar ativamente das tomadas de decisão a respeito do patrimônio e integrar as disputas de interesse e poder que envolvem o tombamento, o registro, a chancela etc. As formas de apropriação e uso do espaço no cotidiano, o significado simbólico das edificações e paisagens, práticas, ritos, ofícios, os interesses econômicos regionais, os valores ligados à preservação ecológica, compõem o complexo caldeirão da diversidade do Patrimônio Cultural.

Nesse sentido, o reconhecimento, de um lado, da diversidade de contextos culturais, da pluralidade de representações desses contextos, e do conflito dos interesses em jogo, e, de outro lado, da necessidade de se definir um consenso − o que preservar, com que finalidade, qual o custo, etc., pressupõe a necessidade de se criarem espaços públicos, não apenas para usufruto da comunidade, como para as próprias tomadas de decisão. Nesse contexto, tanto a autoridade do saber (dos intelectuais) quanto do poder (do Estado e da sociedade, por meio de suas formas de representação política), têm participação fundamental no processo de seleção do que deve ser preservado, mas não constituem poderes decisórios exclusivos. (FONSECA, 2012. p. 115)

Sendo assim, a partir dos anos 1970 por meio de uma perspectiva antropológica da cultura o processo de atribuição de valores aos bens patrimoniais passa a ser relativizado. O patrimônio de um sentido tomado a partir da História Oficial e de valores atribuídos de cima para baixo passou a englobar significados heterogêneos. Ao conceito de Patrimônio Cultural foram agregadas diversas categorias, além das tradicionais interpretações voltadas para os monumentos excepcionais, como Patrimônio Imaterial, Paisagem Cultural dentre outras.

Todavia, na esteira daquela ampliação do campo do patrimônio, experimenta-se o que Françoise Choay (2006) define como inflação patrimonial. Ocorre uma intensificação dos processos de patrimonialização orientados por valores econômicos ligados ao desenvolvimento de uma indústria de bens culturais a serem vendidos, transformados em moeda corrente visando ao turismo de massa e ao estabelecimento das cidades-atração.

O primeiro indício da transformação foi proporcionado pela onda de intervenções executadas em áreas centrais e sítios históricos de várias cidades do Nordeste, na esteira do projeto de “recuperação” do Pelourinho, em Salvador. Essas intervenções – que produziram espaços muito semelhantes destinados ao turismo e ao lazer – alcançaram estrondoso sucesso de público e colocaram, rapidamente, as cidades onde foram executadas em evidência no cenário nacional. (SANT’ANNA, 2004. p. 44).

O mesmo processo que levou à ampliação do conceito de patrimônio, ainda que talvez, de forma involuntária, possibilitou o vertiginoso desenvolvimento do marketing cultural que se consolidou na década de 1990. Ocorreu grande expansão do turismo e a tomada das cidades históricas como mercadoria, com uma marcante expulsão da população local dos centros históricos em direção a novos bairros na periferia das cidades.

Assim a função do Patrimônio Cultural, ligada à formação, preservação e reprodução das múltiplas identidades é ameaçada pelos padrões impostos de ordem financeira. Contudo, Funari e Pelegrini (2006) destacam os pontos positivos do desenvolvimento econômico regional – sobretudo diante da valorização do turismo – porém ressaltando a necessidade de não permitir a redução da política de preservação do patrimônio cultural à lógica das práticas de mercado, mantendo então a função social dos bens culturais como referência à memória pública e histórica.

No entanto, conforme demonstra Sant’Anna (2004) ao analisar os processos de requalificação urbana dos centros históricos de Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo, na década de 1990 voltam a serem priorizados os valores estéticos, plásticos, visuais, contemplativos, “de fachada” do ambiente urbano em detrimento de uma preservação voltada para a imaterialidade da cultura, da tradição local e da apropriação dos espaços tombados pela população. Assim sendo conclui-se com as palavras da autora que:

Nos anos 90, imperou, portanto, uma concepção de patrimônio urbano de caráter fachadista e concentrado em poucos elementos arquitetônicos. Essa concepção foi favorecida e reforçada pela lógica financeira e promocional que presidiu a montagem e a execução da maioria das operações e pelo vínculo dessas ações com o entretenimento, com o lazer cultural, e com um turismo de espetáculos. [...] Na medida em que deixem em segundo plano ou ignorem a função memorial, informativa e documental e bens culturais, funcionam, ainda que involuntariamente, como instrumentos de produção de um patrimônio vazio de significados e de caráter meramente cenográfico. (SANT’ANNA, 2004. p.p 52-53)

Não obstante os avanços e retrocessos experimentados continuamente pelo campo do Patrimônio Cultural no Brasil, as perspectivas mais contextualizadas e que englobam o tema se consolidam por meio do Decreto Nº 3.551 de 4 de agosto de 2000 que institui, no artigo 1º, “o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro” (CASTRIOTA, 2009, p.313), ainda que na prática sejam notórias as permanências daquelas interpretações mais tradicionais.

Referências Bibliográficas:

CASTRIOTA, Leonardo Barci. Patrimônio Cultural: conceitos, políticas, instrumentos. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: IEDS, 2009.
CHOAY, Françoise. A Alegoria do Patrimônio. 3. ed. São Paulo: Estação Liberdade/UNESP, 2006.
CHUVA, Márcia. Fundando a nação: a representação de um Brasil barroco, moderno e civilizado. Topoi .Rio de Janeiro; v. 4, n.7, jul.-dez.2003, p. 313-333. Disponível em: http://www.revistatopoi.org/numeros_anteriores/Topoi%2007/topoi7a4.pdf Acesso em: 03 out.2012.
FONSECA, Maria Cecília Londres. Referências Culturais: Base para novas políticas de patrimônio. POLÍTICAS SOCIAIS: acompanhamento e análise, p.p 111-119. Disponível em http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/politicas_sociais/referencia_2.pdf acessado a 25/10/2012
FUNARI, Pedro Paulo Abreu, PELEGRINI, Sandra C. Araújo. Patrimônio Histórico e Cultural. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006.
GONÇALVES. José Reginaldo Santos. A Retórica da Perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; IPHAN, 1996.
JULIÃO, Letícia. O SPHAN e a cultura museológica no Brasil. Estudos Históricos, v.22, n.43, Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, jan-jul. 2009, p.141-161.
SANT’ANNA, Márcia. A cidade-atração: patrimônio e valorização de áreas centrais no Brasil dos anos 90. In: Cadernos PPG-AU/FAUFBA/ Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. – Ano 2, número especial, (2004) – Ana Fernandes, Paola Berenstein Jacques (org.). – Salvador, PPG-AU/FAUFBA, 2004. p.p 43-58.

Por Matheus Blach.
FONTE: Sobre História. 
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Eis um excelente texto escrito por Matheus Blach para o site Sobre História que trata sobre a construção do conceito de Patrimônio Cultural, iniciado no Brasil a partir da década de 1970. Segundo o autor, desse período em diante, o debate a respeito da valorização do patrimônio cultural passou por mudanças significativas. Foi nesse momento em que foi incorporada a noção de patrimônio imaterial, paralelo a tradicional concepção materialista. Com isso, houve uma notável ampliação de valores e as diferentes visões provenientes de vários outros agentes sociais, como população, Estado e intelectualidade, passaram a ser incorporadas a esse debate.

Além disso, o autor trabalha de forma breve, mas com propriedade, a relação construída entre o patrimônio cultural e a indústria do turismo durante os anos de 1990,  tendo em vista a valorização de um caráter "fachadista" para o patrimônio cultural e voltado tipicamente para  os interesses comerciais e também a institucionalização dessa temática na legislação brasileira.

Uma boa leitura!


O IPHAN na Contemporaneidade: A Ampliação do Conceito de Patrimônio Cultural Pós-1970

Leonardo Castriota (2009) aponta que a definição do que é tradicional se vincula aos aspectos da vida cotidiana que são herdados de gerações passadas, como ritos, técnicas, arte, costumes, linguagem, ou seja, no sentido mais imediato e abrangente da palavra, a cultura. Entretanto, apesar de as tradições estarem essencialmente ligadas às permanências do passado, desempenhando um papel de legitimação de atos do presente, têm manifestas em si uma “força ativamente modeladora, uma dimensão que em última instância, vai lhe garantir certa plasticidade” (CASTRIOTA, 2009, pp. 21-22). Isso se torna mais expressivo devido à expansão visível do fenômeno da globalização e do sistema capitalista que, segundo o autor, aceleram a dinâmica de transformação da cultura nas sociedades e modificam os vínculos existentes entre diferentes gerações, levando a um processo de ruptura cada vez mais veloz entre as mesmas.

Por outro lado, este mesmo fenômeno leva, conforme demonstra Castriota (2009), a um “contramovimento” em que as culturas locais reaparecem ganhando novo sentido. Desse modo concomitantemente à “crise das tradições” ocorrida na contemporaneidade, surge a necessidade do patrimônio histórico. Já após o fim da Segunda Guerra Mundial, os inventários de bens patrimoniais haviam se multiplicado e novas ferramentas de preservação surgiram para englobar, no panteão memorial das sociedades ocidentais, outras formas de arquitetura, arte e cultura que antes haviam sido “esquecidas”.

Assim, o termo patrimônio passa por uma considerável ampliação de seu sentido, sobretudo diante das contribuições da reformulação do olhar acadêmico das Ciências Sociais, no qual despertou o interesse por novos objetos, sujeitos sociais e temáticas culturais antes mantidos à margem da sociedade e das políticas de preservação.

Desde então, foi possível elevar à categoria de patrimônio da humanidade ou da nação, elementos que – na visão mais tradicional do conceito eram descartados – como danças típicas, ritos, expressões religiosas, além de práticas cotidianas de reprodução da cultura e da vida. No Brasil, como afirma Maria Cecília Londres Fonseca (2012), apesar de já existirem projetos para abordagens mais abrangentes do conceito de patrimônio, como a de Mário de Andrade, tal perspectiva se desenvolve tardiamente a partir dos anos 1970.

Desse modo, a autora visualiza que a partir dos anos 1970 as práticas patrimoniais no Brasil passam por uma sistemática revisão, sofrendo mudanças significativas em sua orientação em voga desde 1937. A partir dessas transformações, em sintonia com as novas perspectivas que permeavam o campo da História, das Ciências Sociais – sobretudo a Antropologia – como também da moda, design, indústria e informática, foi possível incorporar à noção de Patrimônio Histórico o conceito de cultura. O Patrimônio Cultural passou a abarcar bens patrimoniais de natureza material e imaterial.

Entretanto, o cumprimento do preceito constitucional implica regulamentação no que diz respeito à preservação dos bens culturais de natureza imaterial, para os quais instrumentos de proteção de caráter restritivo, como é o tombamento, são inadequados. É preciso criar formas de identificação e de apoio que, sem tolher ou congelar essas manifestações culturais, nem aprisioná-las a valores discutíveis como o de autenticidade, favoreçam sua continuidade. (FONSECA, 2012. p. 112)

A partir disto é que será proposta a noção de Referência Cultural no sentido de construir os Inventários Nacionais de Referências Culturais (INRC). De acordo com Fonseca (2012), esta noção se desenvolve a partir de uma concepção antropológica de cultura em que são privilegiados os aspectos de pluralidade e diversidade culturais ligados não somente a produção e reprodução da vida humana no seu caráter material, mas, sobretudo ligados aos sentidos, significados, símbolos, subjetividades e valores associados às práticas sociais e bens imateriais.

Embora essas informações só possam ser apreendidas a partir de manifestações materiais, ou suportes − sítios, monumentos, conjuntos urbanos, artefatos, relatos, ritos, práticas, etc. − só se constituem como referências culturais quando são consideradas e valorizadas enquanto marcas distintivas por sujeitos definidos. (FONSECA, 2012. p. 112)

Sendo assim, a construção das narrativas e discursos de valorização daquilo que se pretenderia nomear como patrimônio nacional, passaria a ser uma elaboração conjunta entre os diversos sujeitos históricos envolvidos no processo de proteção. Neste discurso renovado das práticas patrimoniais, a comunidade local, pelo menos teoricamente, passa a participar ativamente das tomadas de decisão a respeito do patrimônio e integrar as disputas de interesse e poder que envolvem o tombamento, o registro, a chancela etc. As formas de apropriação e uso do espaço no cotidiano, o significado simbólico das edificações e paisagens, práticas, ritos, ofícios, os interesses econômicos regionais, os valores ligados à preservação ecológica, compõem o complexo caldeirão da diversidade do Patrimônio Cultural.

Nesse sentido, o reconhecimento, de um lado, da diversidade de contextos culturais, da pluralidade de representações desses contextos, e do conflito dos interesses em jogo, e, de outro lado, da necessidade de se definir um consenso − o que preservar, com que finalidade, qual o custo, etc., pressupõe a necessidade de se criarem espaços públicos, não apenas para usufruto da comunidade, como para as próprias tomadas de decisão. Nesse contexto, tanto a autoridade do saber (dos intelectuais) quanto do poder (do Estado e da sociedade, por meio de suas formas de representação política), têm participação fundamental no processo de seleção do que deve ser preservado, mas não constituem poderes decisórios exclusivos. (FONSECA, 2012. p. 115)

Sendo assim, a partir dos anos 1970 por meio de uma perspectiva antropológica da cultura o processo de atribuição de valores aos bens patrimoniais passa a ser relativizado. O patrimônio de um sentido tomado a partir da História Oficial e de valores atribuídos de cima para baixo passou a englobar significados heterogêneos. Ao conceito de Patrimônio Cultural foram agregadas diversas categorias, além das tradicionais interpretações voltadas para os monumentos excepcionais, como Patrimônio Imaterial, Paisagem Cultural dentre outras.

Todavia, na esteira daquela ampliação do campo do patrimônio, experimenta-se o que Françoise Choay (2006) define como inflação patrimonial. Ocorre uma intensificação dos processos de patrimonialização orientados por valores econômicos ligados ao desenvolvimento de uma indústria de bens culturais a serem vendidos, transformados em moeda corrente visando ao turismo de massa e ao estabelecimento das cidades-atração.

O primeiro indício da transformação foi proporcionado pela onda de intervenções executadas em áreas centrais e sítios históricos de várias cidades do Nordeste, na esteira do projeto de “recuperação” do Pelourinho, em Salvador. Essas intervenções – que produziram espaços muito semelhantes destinados ao turismo e ao lazer – alcançaram estrondoso sucesso de público e colocaram, rapidamente, as cidades onde foram executadas em evidência no cenário nacional. (SANT’ANNA, 2004. p. 44).

O mesmo processo que levou à ampliação do conceito de patrimônio, ainda que talvez, de forma involuntária, possibilitou o vertiginoso desenvolvimento do marketing cultural que se consolidou na década de 1990. Ocorreu grande expansão do turismo e a tomada das cidades históricas como mercadoria, com uma marcante expulsão da população local dos centros históricos em direção a novos bairros na periferia das cidades.

Assim a função do Patrimônio Cultural, ligada à formação, preservação e reprodução das múltiplas identidades é ameaçada pelos padrões impostos de ordem financeira. Contudo, Funari e Pelegrini (2006) destacam os pontos positivos do desenvolvimento econômico regional – sobretudo diante da valorização do turismo – porém ressaltando a necessidade de não permitir a redução da política de preservação do patrimônio cultural à lógica das práticas de mercado, mantendo então a função social dos bens culturais como referência à memória pública e histórica.

No entanto, conforme demonstra Sant’Anna (2004) ao analisar os processos de requalificação urbana dos centros históricos de Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo, na década de 1990 voltam a serem priorizados os valores estéticos, plásticos, visuais, contemplativos, “de fachada” do ambiente urbano em detrimento de uma preservação voltada para a imaterialidade da cultura, da tradição local e da apropriação dos espaços tombados pela população. Assim sendo conclui-se com as palavras da autora que:

Nos anos 90, imperou, portanto, uma concepção de patrimônio urbano de caráter fachadista e concentrado em poucos elementos arquitetônicos. Essa concepção foi favorecida e reforçada pela lógica financeira e promocional que presidiu a montagem e a execução da maioria das operações e pelo vínculo dessas ações com o entretenimento, com o lazer cultural, e com um turismo de espetáculos. [...] Na medida em que deixem em segundo plano ou ignorem a função memorial, informativa e documental e bens culturais, funcionam, ainda que involuntariamente, como instrumentos de produção de um patrimônio vazio de significados e de caráter meramente cenográfico. (SANT’ANNA, 2004. p.p 52-53)

Não obstante os avanços e retrocessos experimentados continuamente pelo campo do Patrimônio Cultural no Brasil, as perspectivas mais contextualizadas e que englobam o tema se consolidam por meio do Decreto Nº 3.551 de 4 de agosto de 2000 que institui, no artigo 1º, “o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro” (CASTRIOTA, 2009, p.313), ainda que na prática sejam notórias as permanências daquelas interpretações mais tradicionais.

Referências Bibliográficas:

CASTRIOTA, Leonardo Barci. Patrimônio Cultural: conceitos, políticas, instrumentos. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: IEDS, 2009.
CHOAY, Françoise. A Alegoria do Patrimônio. 3. ed. São Paulo: Estação Liberdade/UNESP, 2006.
CHUVA, Márcia. Fundando a nação: a representação de um Brasil barroco, moderno e civilizado. Topoi .Rio de Janeiro; v. 4, n.7, jul.-dez.2003, p. 313-333. Disponível em: http://www.revistatopoi.org/numeros_anteriores/Topoi%2007/topoi7a4.pdf Acesso em: 03 out.2012.
FONSECA, Maria Cecília Londres. Referências Culturais: Base para novas políticas de patrimônio. POLÍTICAS SOCIAIS: acompanhamento e análise, p.p 111-119. Disponível em http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/politicas_sociais/referencia_2.pdf acessado a 25/10/2012
FUNARI, Pedro Paulo Abreu, PELEGRINI, Sandra C. Araújo. Patrimônio Histórico e Cultural. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006.
GONÇALVES. José Reginaldo Santos. A Retórica da Perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; IPHAN, 1996.
JULIÃO, Letícia. O SPHAN e a cultura museológica no Brasil. Estudos Históricos, v.22, n.43, Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, jan-jul. 2009, p.141-161.
SANT’ANNA, Márcia. A cidade-atração: patrimônio e valorização de áreas centrais no Brasil dos anos 90. In: Cadernos PPG-AU/FAUFBA/ Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. – Ano 2, número especial, (2004) – Ana Fernandes, Paola Berenstein Jacques (org.). – Salvador, PPG-AU/FAUFBA, 2004. p.p 43-58.

Por Matheus Blach.
FONTE: Sobre História. 
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