Por, Daniel Antonio Coelho Silva
A obra desses excelentes pesquisadores João José Reis e Eduardo Silva, denominada Negociação e conflito, vem ratificar uma tendência bastante saudável da historiografia brasileira de fazer releituras do período escravocrata que buscam desmistificar e corrigir uns tantos equívocos produzidos a respeito da atuação dos negros durante a vigência do regime de escravidão no Brasil. Revêem-se, assim, ao menos em parte, inclusive formulações de autores célebres como Nina Rodrigues, Gilberto Freyre, Florestan Fernandes, na medida em que não consideraram devidamente o escravo como ator político capaz de resistir, no dia-a-dia, ainda que a seu modo, aos desmandos e à exploração física e psicológica a que os controladores do sistema escravista os submetiam.
A tese central do livro é de que, muito mais do que lutarem abertamente contra o sistema, os escravos participaram de um sem-número de negociações com seus senhores,.ou seja, mesmo que os negros não tivessem organizado em conjunto uma luta direta para suprimir o sistema de escravidão, eles procuraram em diversas ocasiões negociar direitos ou condições mínimas de sobrevivência..
Indo além, segundo os autores de Negociação e conflito, o período escravocrata foi marcado não somente pelo conflito entre escravos e senhores, mas igualmente pela negociação e muitas vezes pela acomodação entre os agentes dentro do sistema. Afinal, não é possível que os escravos resistissem 24 horas à dominação e muito menos era possível que os senhores pudessem empregar a força de maneira contínua para subjugar os cativos. Em meio a idas e vindas no processo de lutas e negociações, a chamada “brecha camponesa” foi um artifício engenhoso que teve sua utilidade comprovada, levando os escravos, em certos casos, a ter satisfeitas suas reivindicações, como, por exemplo, produzirem para si dentro dos limites das terras do senhor. Em circunstâncias de descontentamento ostensivo, chegou-se até a pleitear a participação na escolha de feitores, além de obterem outras conquistas para mitigar a brutal exploração que se abatia sobre eles.
As fugas de escravos no período colonial e durante o império eram, sem dúvida, um recurso extremo para livrar-se do cativeiro.Elas, no entanto, não aconteceram em grande número, quando comparadas ao imenso contingente de escravos presentes nos país. De mais a mais, como frisam João José Reis e Eduardo Silva, o Brasil escravocrata vivia o chamado paradigma ideológico colonial: a simples fuga do escravo ou a alforria não o tornava um homem livre, já que o conjunto da sociedade não o considerava como um ser igual a qualquer homem branco.
Entre os escravos havia diferenças de ordem étnica e de nascimento que alimentavam rivalidades que na vida cotidiana eram utilizadas pelos senhores para evitar uma união entre os mesmos que pudesse pôr em xeque o poder senhorial – tal era o caso da rivalidade existente entre os pretos mina (africanos) e os crioulos (nascidos no Brasil) –, porém os escravos também se aproveitavam das diferenças e das inimizades entre os senhores para fugir, obter manumissões e negociar direitos.
A invasão do candomblé do Accú, descrita no capitulo 3, coloca à mostra uma perseguição bastante comum naquela época, ao mesmo tempo em que revela a capacidade dos negros de conseguir apoio político entre os brancos que divergiam daqueles que queriam acabar com os ritos de origem africana. Este fato é exemplar por comprovar que os escravos tiravam proveito das divisões internas que havia entre senhores para alcançar suas conquistas, isto é, os negros não foram somente agentes passivos dentro da lógica escravista, mas atuaram de forma a minimizar sua situação de dominados dentro da estrutura econômica da sociedade brasileira. Tanto não eram meros sujeitos passivos que freqüentemente os escravos despertavam temores junto a seus dominadores.
O episódio do Dois de Julho, acontecido na Bahia em 1823, é bastante significativo. Como se sabe, ele resultou da oposição e do desentendimento entre brancos nascidos na província baiana e os portugueses que lá moravam. A elite baiana, enquanto lutava para afastar os portugueses dos negócios e do poder político na província, temia que os negros adicionassem à causa em questão o fim da escravidão. O que ela pretendia era uma “revolução” que não interferisse e nem modificasse o que lhe parecia fundamental, o regime de escravidão. Portanto, se fazia necessário desmobilizar o “partido negro” e sua pretensão de instituição da liberdade dos cativos, juntamente com a libertação da dominação portuguesa. Nesse sentido, a Bahia, foi pioneira no que poucos meses mais tarde iria se tornar à independência brasileira: uma solução de compromisso que não modificou o principal pilar da economia do Brasil na época, o modo de produção escravista.
Já o último capítulo do livro aborda o levante do malês ocorrido na Bahia em 1835. Este acontecimento histórico evidencia a luta empreendida por escravos africanos de religiosidade mulçumana que demonstraram capacidade de organização para impulsionar seu projeto de superação da sua condição escrava.
João José Reis e Eduardo Silva sustentam que a revolta do malês, ao contrário do que pensadores e intelectuais como Nina Rodrigues diziam, está relacionada com a luta pelo fim da escravidão, ou seja, a revolta que se deu na Bahia não foi simplesmente um conflito de cunho religioso, mas uma rebelião escrava que procurou derrotar a classe senhorial e o domínio por ela exercida.
Logo se vê que a experiência negra, tal qual emerge nessa obra, não é algo que possa ser enquadrado numa forma. Ela comporta muitas dimensões, que vão além da acomodação dos negros, do assassinato de feitores e senhores, passando pela negociação no interior das fazendas e pela fuga, seguida ou não da formação de quilombos, onde também despontaram ex-escravos escravizando negros.
Afinal, a análise dos autores busca construir uma visão dialética a respeito das relações entre escravos e senhores, procurando simultaneamente fugir dos dogmatismos e das visões parciais e estanques dos fenômenos históricos. Nisso consiste sua contribuição, o que não é pouco, muito pelo contrário.
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Por, Daniel Antonio Coelho Silva
A obra desses excelentes pesquisadores João José Reis e Eduardo Silva, denominada Negociação e conflito, vem ratificar uma tendência bastante saudável da historiografia brasileira de fazer releituras do período escravocrata que buscam desmistificar e corrigir uns tantos equívocos produzidos a respeito da atuação dos negros durante a vigência do regime de escravidão no Brasil. Revêem-se, assim, ao menos em parte, inclusive formulações de autores célebres como Nina Rodrigues, Gilberto Freyre, Florestan Fernandes, na medida em que não consideraram devidamente o escravo como ator político capaz de resistir, no dia-a-dia, ainda que a seu modo, aos desmandos e à exploração física e psicológica a que os controladores do sistema escravista os submetiam.
A tese central do livro é de que, muito mais do que lutarem abertamente contra o sistema, os escravos participaram de um sem-número de negociações com seus senhores,.ou seja, mesmo que os negros não tivessem organizado em conjunto uma luta direta para suprimir o sistema de escravidão, eles procuraram em diversas ocasiões negociar direitos ou condições mínimas de sobrevivência..
Indo além, segundo os autores de Negociação e conflito, o período escravocrata foi marcado não somente pelo conflito entre escravos e senhores, mas igualmente pela negociação e muitas vezes pela acomodação entre os agentes dentro do sistema. Afinal, não é possível que os escravos resistissem 24 horas à dominação e muito menos era possível que os senhores pudessem empregar a força de maneira contínua para subjugar os cativos. Em meio a idas e vindas no processo de lutas e negociações, a chamada “brecha camponesa” foi um artifício engenhoso que teve sua utilidade comprovada, levando os escravos, em certos casos, a ter satisfeitas suas reivindicações, como, por exemplo, produzirem para si dentro dos limites das terras do senhor. Em circunstâncias de descontentamento ostensivo, chegou-se até a pleitear a participação na escolha de feitores, além de obterem outras conquistas para mitigar a brutal exploração que se abatia sobre eles.
As fugas de escravos no período colonial e durante o império eram, sem dúvida, um recurso extremo para livrar-se do cativeiro.Elas, no entanto, não aconteceram em grande número, quando comparadas ao imenso contingente de escravos presentes nos país. De mais a mais, como frisam João José Reis e Eduardo Silva, o Brasil escravocrata vivia o chamado paradigma ideológico colonial: a simples fuga do escravo ou a alforria não o tornava um homem livre, já que o conjunto da sociedade não o considerava como um ser igual a qualquer homem branco.
Entre os escravos havia diferenças de ordem étnica e de nascimento que alimentavam rivalidades que na vida cotidiana eram utilizadas pelos senhores para evitar uma união entre os mesmos que pudesse pôr em xeque o poder senhorial – tal era o caso da rivalidade existente entre os pretos mina (africanos) e os crioulos (nascidos no Brasil) –, porém os escravos também se aproveitavam das diferenças e das inimizades entre os senhores para fugir, obter manumissões e negociar direitos.
A invasão do candomblé do Accú, descrita no capitulo 3, coloca à mostra uma perseguição bastante comum naquela época, ao mesmo tempo em que revela a capacidade dos negros de conseguir apoio político entre os brancos que divergiam daqueles que queriam acabar com os ritos de origem africana. Este fato é exemplar por comprovar que os escravos tiravam proveito das divisões internas que havia entre senhores para alcançar suas conquistas, isto é, os negros não foram somente agentes passivos dentro da lógica escravista, mas atuaram de forma a minimizar sua situação de dominados dentro da estrutura econômica da sociedade brasileira. Tanto não eram meros sujeitos passivos que freqüentemente os escravos despertavam temores junto a seus dominadores.
O episódio do Dois de Julho, acontecido na Bahia em 1823, é bastante significativo. Como se sabe, ele resultou da oposição e do desentendimento entre brancos nascidos na província baiana e os portugueses que lá moravam. A elite baiana, enquanto lutava para afastar os portugueses dos negócios e do poder político na província, temia que os negros adicionassem à causa em questão o fim da escravidão. O que ela pretendia era uma “revolução” que não interferisse e nem modificasse o que lhe parecia fundamental, o regime de escravidão. Portanto, se fazia necessário desmobilizar o “partido negro” e sua pretensão de instituição da liberdade dos cativos, juntamente com a libertação da dominação portuguesa. Nesse sentido, a Bahia, foi pioneira no que poucos meses mais tarde iria se tornar à independência brasileira: uma solução de compromisso que não modificou o principal pilar da economia do Brasil na época, o modo de produção escravista.
Já o último capítulo do livro aborda o levante do malês ocorrido na Bahia em 1835. Este acontecimento histórico evidencia a luta empreendida por escravos africanos de religiosidade mulçumana que demonstraram capacidade de organização para impulsionar seu projeto de superação da sua condição escrava.
João José Reis e Eduardo Silva sustentam que a revolta do malês, ao contrário do que pensadores e intelectuais como Nina Rodrigues diziam, está relacionada com a luta pelo fim da escravidão, ou seja, a revolta que se deu na Bahia não foi simplesmente um conflito de cunho religioso, mas uma rebelião escrava que procurou derrotar a classe senhorial e o domínio por ela exercida.
Logo se vê que a experiência negra, tal qual emerge nessa obra, não é algo que possa ser enquadrado numa forma. Ela comporta muitas dimensões, que vão além da acomodação dos negros, do assassinato de feitores e senhores, passando pela negociação no interior das fazendas e pela fuga, seguida ou não da formação de quilombos, onde também despontaram ex-escravos escravizando negros.
Afinal, a análise dos autores busca construir uma visão dialética a respeito das relações entre escravos e senhores, procurando simultaneamente fugir dos dogmatismos e das visões parciais e estanques dos fenômenos históricos. Nisso consiste sua contribuição, o que não é pouco, muito pelo contrário.
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