sexta-feira, setembro 30, 2016

É POSSÍVEL DERRUBAR O GOVERNO TEMER?

Apesar de sua força institucional e de seu apoio midiático e empresarial, o governo Temer é fortemente instável por sua ilegitimidade e impopularidade.

Ao sonhador veraz, Mino Carta
Créditos da foto: Beto Barata
Por Juarez Guimarães

A esquerda brasileira ainda não formou um juízo unitário sobre a força e a fraqueza do governo Temer, se é possível pela via democrática interromper o seu mandato golpista ou se estamos diante de um longo período de resistência, cujo horizonte é defender com radicalidade as lideranças políticas e sociais em processo de criminalização, os direitos democráticos e sociais sob gravíssima ameaça, acumulando forças para uma nova etapa das lutas.

Há um risco evidente de transformar desejo em realidade, maximizando a instabilidade e minimizando a potência de estabilidade do governo Temer, ao mesmo tempo em que se descura dos limites programáticos, políticos e organizativos do nosso movimento político. A leitura de certos blogs alternativos da esquerda brasileira, que exercem um papel vital de contra-informação e contra-opinião em relação à grande mídia empresarial, pode alimentar diariamente este voluntarismo. Às vezes, parece até que a derrubada do governo Temer está à esquina; basta ir ao seu encontro!

Há, porém, um outro risco que é o de tomar a força institucional do governo Temer como símbolo da sua força política e o apoio empresarial e midiático como símbolo de sua legitimidade. Por esta análise, Temer, apesar da resistência importante ao golpe, cumprirá seguramente até o final o seu mandato de destruição do país e de criminalização das lideranças populares. O acúmulo político da esquerda neste contexto adverso seria feito fundamentalmente fora da institucionalidade, repondo suas energias históricas através de um novo programa de esquerda, sem conciliações com as classes dominantes, e de uma nova base social e militante capaz de sustentar um novo período de mudanças estruturais do país.

A reflexão proposta neste breve artigo procura compor o que há de força épica de uma vontade política com o que há de realismo político necessário em outra, formulando uma terceira hipótese que busca compreender a força e a fraqueza do governo Temer em relação com a força e fraqueza do movimento político que opõe resistência a ele. Trata-se de construir um quadro complexo e dinâmico de análise da conjuntura que se apóia em três dimensões analíticas chaves.

A primeira delas é que o governo Temer nasce de uma fortíssima convergência de forças políticas, corporativas judiciais, geopolíticas, empresariais e midiáticas – lideradas pelo PSDB- mas não conseguiu construir uma legitimidade democrática capaz de isolar ou marginalizar os que denunciam o golpe. Como estas dinâmicas de normalização e deslegitimação se relacionam e qual prevalecerá sobre a outra?

A segunda dimensão analítica busca entender mais precisamente os movimentos de formação de opinião pública desde a crise do segundo governo Dilma até o período após a votação no Senado que confirmou o golpe. A avaliação que se fará é que este movimento de opinião pública ainda não se estabilizou e está polarizado à esquerda e à direita, com um grande centro ainda indeciso entre se conformar ao possível do governo Temer ou apoiar decididamente quem luta imediatamente pelo seu fim.

A terceira dimensão analítica foca no amplo, diferenciado e em processo de construção, movimento político “Fora Temer”. O que se proporá é que a unidade deste movimento, a sua radicalidade democrática e a sua capacidade de incorporar as forças organizadas das classes trabalhadoras tem a capacidade de decidir os rumos da conjuntura.

Normalização , instabilidade e crise de governo

Para analisar o futuro do governo Temer , é preciso diferenciar ilegitimidade e impopularidade, instabilidade e crise de governo. Ilegitimidade diz respeito ao questionamento do caráter do próprio governo e a impopularidade mede o grau de sua rejeição às suas políticas. Instabilidade diz respeito ao grau de imprevisão sobre seu futuro a partir da precariedade de seus fundamentos e ingovernabilidade seria um caso extremo de instabilidade, na qual a própria ação de governo torna-se inviável.

Se definimos a normalização como o processo de crescente isolamento das lideranças ou forças políticas que questionam a legitimidade do governo Temer e propõem o seu final, pode-se afirmar que a vitória dos golpistas no Senado, mesmo com uma vantagem de votos com folga maior que a dos dois terços, não “virou a página” como esperava a inteligência estratégica que formulava publicamente a passagem do “governo interino” para o “presidente Temer”.

A presença forte, combativa e memorável de Dilma na sessão do Senado que cassou o seu mandato, as manifestações massivas e unitárias que a ela se seguiram no dia 31 de agosto e no dia 7 de setembro, a continuidade da repercussão internacional da narrativa que caracteriza o impeachment sem crime de responsabilidade como golpe, a decisão agora consensual da direção do PT – unido-se ao PC do B, ao PSOL e demais forças da esquerda -, em favor de uma campanha pelas diretas já são todas evidências de que não há um isolamento político do questionamento da legitimidade do governo Temer.

Se a vitória da normalização não se consumou, seria correto anunciar uma instabilidade crescente do governo Temer? De um ponto de vista estritamente institucional, esta não parece a tendência: a vitória de Rodrigo Maia para a presidência da Câmara teve o importante papel de soldar uma maioria congressual mais orgânica aos planos do governo Temer, propiciando em um segundo momento um aparente importante grau de controle sobre o processo de cassação de Cunha, cuja reação até agora tem sido muito aquém do escândalo disruptivo esperado; a eleição de Gilmar Mendes para a presidência do TSE e sua decisão de adiar o exame das contas da chapa Dilma/ Temer para o próximo ano retira uma outra dimensão de pressão imediata sobre o mandato de Temer; a indicação de um novo vice Procurador- Geral publicamente ligado a Aécio Neves por Janot anuncia um fortalecimento do PSDB em uma instância decisiva nestes tempos de judicialização.

Do STF, agora presidido por Carmen Lúcia, não se espera nenhuma decisão que possa ferir a estabilidade do governo Temer. O processo da Operação Lava-Jato tem aprofundado a sua, desde há muito visível e cada vez mais escandalosa, orientação partidária de caça ao PT e à liderança de Lula.

Por outro lado, os resultados das eleições municipais de 2016, se não confirmarem uma derrota da esquerda nos principais centros eleitorais do país, dificilmente terão um resultado nacional que possa ser apropriado diretamente contra a estabilidade do governo Temer. O trabalho de nacionalização das eleições municipais, iniciado tardiamente em função da crise de direção dos principais partidos de esquerda e de uma postura, em certos casos, sectária do PSOL, teve até agora resultados muito parciais.

Assim, a instabilidade do governo Temer está relacionada principalmente a uma possibilidade de crescimento expressivo e radical de sua impopularidade, que seja politicamente orientada para por um fim político ao seu mandato. É esta hipótese de um crescimento radical e fatal de sua impopularidade que explica a montagem da agenda do governo Temer em relação ao programa ultra-neoliberal que é reivindicado pelos capitais financeiros e pela força política que dirigiu programaticamente o golpe: inicia-se a agenda pela privatização e pelo regime de concessões , fartamente financiadas pelo BNES retornado a sua função privatista dos anos 90; após as eleições virá a tentativa de aprovar a estratégica PEC 241, fundamental para o desmonte das políticas públicas e, para o ano que vem, a reforma previdenciária e trabalhista. A reforma eleitoral, que talvez venha alinhada a uma recomposição partidária de um novo bloco de poder, pode ser, enfim, pensada casuisticamente para modelar o resultado já das eleições presidenciais de 2018.

A hipótese de uma crise de ingovernabilidade golpista ficaria, portanto, condicionada a um crescimento de um movimento político de massas, apoiado em uma radicalização da impopularidade do governo Temer, que poderia se combinar com dissidências e contradições no seio da ampla coalizão partidária e parlamentar que o sustenta.

Será esta hipótese possível ? É o que passamos a analisar a seguir.

Clivagens e movimentos da opinião pública; da resignação à revolta?

Um exame da última Pesquisa Nacional da Vox Populi, realizada entre os dias 29 de julho e 1 de agosto, mostra que esta hipótese hoje ainda não é possível. Se é verdade que 61 % dos brasileiros preferem o direito de escolher um novo presidente, quando estimulados por três respostas - a realização de eleições para presidente antes de 2018, o retorno de Dilma ou a permanência definitiva de Temer até 2018 -, os índices de avaliação do governo Temer não autorizam uma avaliação de que há uma insatisfação generalizada e, mais ainda, uma disposição majoritária para ir às ruas para exigir o seu fim. Em relação à pergunta acima formulada, apenas 17 % optaram por confirmar o seu mandato, o que demonstra a sua ilegitimidade mas não, nos termos que definimos, a sua ingovernabilidade.

Em relação à avaliação de Temer, se apenas 13 % têm uma avaliação positiva de seu governo, os que têm uma avaliação regular (38 %) são em maior número dos que têm uma avaliação claramente negativa (35 %), enquanto 14 % não opinaram. Isto ainda diferencia o seu governo do último período do governo Dilma, quando uma maioria de quase 2/3 avaliava como negativa o seu governo.

Na região Sudeste, há um empate entre os que têm avaliação negativa (42%) e os que têm avaliação regular (41%), enquanto 17 % o avaliam positivamente. No Sul, o governo Temer melhoraria sua avaliação: 51 % regular, 30 % negativo e 19 % positivo. No nordeste, a tendência se inverte com um claro porcentual maior de desaprovação.

É interessante ver a orientação classista ou popular destes dados. A rejeição a Temer cresce quando se vai da maior renda para a menor e do padrão educacional do universitário para o ensino fundamental. Assim, até 2 SM ( 46 % N, 41 % R e 13 % P), de 2 a 5 SM ( 40% N, 48 % R, 16 % P), mais que 5 SM ( 35 % N, 47 % R, 19 % P), sendo N negativo, R regular e P positivo. Ou, Ensino Fundamental (44% N, 44 % R, 12 % P), Ensino Médio ( 41 % N, 44 % R, 15 %P) e Ensino Superior ( 35 % N, 47 % R, 19 % P).

Como interpretar estes dados?

Uma análise profunda destes dados exigiria um trabalho interpretativo, de correlação, de análise de série de pesquisas, de utilização de outros bancos de dados, mais além do que caberia neste ensaio. Mas é possível lançar uma hipótese verossímil.

Ao que tudo indica, há cerca de 1/3 dos brasileiros que rejeitam Temer já de modo mais claro. Este 1 /3 provavelmente constitui a base histórica mais estável de votação na esquerda brasileira, que ainda continua votando em Lula no primeiro turno ( 28 %) e no segundo turno ( em torno a 35 %). Mas apenas cerca da metade dela apoiava a permanência de Dilma e hoje apenas 1 /3 dela mantém simpatia pelo PT, como registra a mesma pesquisa.

Se cerca de 1/3 dos brasileiros têm votado sistematicamente no PSDB em eleições presidenciais no primeiro turno ao longo das últimas eleições, é razoável supor que menos da metade deles apóiam decididamente o governo Temer. A outra metade, estaria formando ainda uma opinião mais definitiva, estando disponível até para vir apoiar uma eventual troca de comando do governo golpista, em favor do PSDB que já ocupa tantos postos chaves.

Se desde 1994 a 2014, 1/3 dos eleitores variou o seu voto pragmaticamente para a esquerda ou para a direita – ora dando maioria ao PSDB, ora dando maioria ao PT, da última vez dividindo-se quase ao meio - é de se supor que eles hoje formam a parte mais substantiva dos que ainda não formaram uma opinião sobre o governo Temer: não o consideram positivo ou negativo. Estão esperando para formar uma opinião.

O mais provável é que nos próximos meses este 1/3 de indecisos se volte cada vez mais para formar uma opinião negativa sobre o governo Temer. Por três razões conjugadas: a economia está longe de dar um sinal seguro de recuperação, com a manutenção das altas taxas de juro e cortes profundos nos gastos estatais, além de recuos nas rendas das famílias brasileiras, em um quadro negativo da economia internacional; as medidas anti-populares a serem tomadas pelo governo Temer terão uma repercussão fortemente negativa ; os escândalos e denúncias de corrupção continuarão atingindo fortemente o governo Temer e seus aliados.

Dados recém divulgados do Ibope para as capitais confiram esta previsão: o patamar de ruim/péssimo do governo Temer nas capitais já estaria na ordem de mais de 40 % no Sudeste e mais de 60 % no Nordeste. E as medidas mais anti-populares apenas começaram a ser encaminhadas.

O que ocorreria com um governo que já é fortemente ilegítimo para a maioria da população, passar a ser fortemente rejeitado também pela maioria da população?

Neste contexto, é possível que manifestações de revoltas massivas combinadas com dificuldades cada vez maiores do governo em manter a sua base parlamentar coesa, em meio a um crescimento das tensões no interior da coalizão que o viabiliza, forme uma crise fatal para o governo Temer.

Imaginar politicamente a queda do governo Temer 

Se a mídia empresarial a cada dia nos quer mostrar porque a esquerda não tem sequer identidade e está derrotada, aprendemos dia a dia nas ruas lições de como a esquerda se reinventa, pode e precisa ser vitoriosa. Mas alguém já formulou a imaginação política da derrota definitiva dos golpistas?

Esta imaginação está no editorial de Mino Carta “Em busca da consciência” da revista Carta Capital do dia 14 de setembro que traz na capa engajada as bandeiras do “Fora Temer” e “Diretas já”. Diz Mino Carta, no site da revista, sempre com uma garrafa de vinho – in vino veritas? – e uma taça à mão: “ A ilegitimidade do governo Temer é nítida não somente aos olhos estrangeiros, e o “Fora Temer” já sobrepuja o tom e o efeito do “fora Dilma”. Bons sinais em meio ao caos. Apreciaria evitar ilusões pela enésima vez, mas lá vou eu, de novo. E me arrisco: quem sabe algum dia o brasileiro do futuro, próximo, espero, possa dizer que o golpe de uma quadrilha a serviço da casa-grande teve o condão de despertar a consciência nacional”.

“A vida é sonho”, já se escreveu, e o verismo que soubermos viver neles, acrescentamos. É preciso analisar também a força e a fraqueza do movimento político “Fora Temer”.

A sua força pode ser sinteticamente revelada em três fundamentos mutuamente configurados. Em um momento em que a esquerda brasileira corria o risco de perder sem identidade – ser posta abaixo e praticando políticas econômicas neoliberais -, o movimento “Fora Temer” repôs o vermelho anti-neoliberal e anti-golpista nas ruas. Sob o risco de descentramento e dissolução, o movimento “Fora Temer” soube construir uma unidade política - a Frente Brasil Popular, a Frente Povo Sem Medo - que há mais de uma década não se verificava. Por fim, o movimento “Fora Temer” é político-cultural e libertário, trouxe os artistas, as mulheres, os negros, os gays para o primeiro plano da luta política, “caminhando e cantando como nos velhos tempos”, Chico mas também Caetano e Gil, o nacional-popular e a Tropicália, juntos como nunca.

A sua fraqueza, da mesma forma, pode e deve ser também escavada: ele repôs o vermelho mas não ocupou o verde-amarelo, isto é, foi identitário de esquerda mas não hegemônico. É possível que 99 % dos que participaram das manifestações de rua votaram em Dilma no segundo turno em 2014, embora uma parte importante dos que nela votaram, na rua não compareceram. A segunda fraqueza, decisiva, foi a ausência das bases dos movimentos sindicais, embora a CUT tenha tido um papel decisivo em várias momentos, e também dos povos das periferias, embora lideranças populares tenham também cumprido um papel fundamental . Além disso, em função de seu processo de institucionalização, a esquerda brasileira carece de bases organizativas e comunicativas à altura de um protagonismo hegemônico.

Daí o risco maior de falar para si, de perder o sentido da formação das maiorias a partir de sua identidade. Falta a esta esquerda um programa para um novo ciclo de mudanças, “democrático e popular”. A noção de que um ciclo de mudanças por dentro da ordem política corrompida e não reformada e em conciliação com as forças do capital financeiro chegou ao final, agora é uma consciência generalizada. O que antes se programatizava na esquerda do PT como impasse, na cisão do PT, muitas vezes sectariamente, como traição, agora se tornou consciência generalizada ou, pelo menos, majoritária. Uma refundação da esquerda brasileira está no horizonte.

O movimento político “For a Temer” precisa agora se tornar hegemônico, no sentido mesmo de Gramsci. Por quais caminhos?

É possível pensar em três grandes vetores de universalização.

O primeiro deles é o de vincular o “Fora Temer” com a reivindicação democrática das “Diretas já”, que representa, no contexto, o caminho da reposição da soberania popular. Não se trata apenas de um slogan mas de uma campanha em torno a uma solução democrática para o impasse brasileiro que se dirige a todos que são contra o golpe mas não se sentem representados pela esquerda. A esquerda brasileira tem que reconstruir as suas razões republicanas no coração do povo brasileiro: daí a importância estratégica central de um plebiscito para a convocação de uma Assembléia Constituinte Extraordinária para fazer a reforma política.

O segundo caminho é da convocação a todos para defender a liderança histórica de Lula diante da sua infamante perseguição e ameaça de cassação. Este é o movimento histórico de uma nova fusão programática entre uma esquerda renovada e um novo ciclo popular de mudanças, de sentido frentista político, latino-americano e internacionalista, no sentido de que Lula é hoje, mais do que nunca, a principal liderança popular da esquerda mundial. Mais do que nunca precisamos do Lula, alma de peão de São Bernardo, e Lula precisa de nós, não apenas para resistir, mas para ir além.

O terceiro caminho é o da “dialética negativa”, para retomar a bela expressão de Adorno. Não há mais como defender os direitos do trabalho, os direitos da saúde e da educação, da previdência, dos negros e das mulheres, separadamente e até corporativamente. Sobretudo não há mais como defender estes direitos sem por no centro o ataque aos poderes do capital financeiro e dos rentistas na democracia brasileira. Um novo ciclo de formação de direitos, universal e distributivo, feminista e anti-racista, libertário e ecológico, precisa programaticamente ser construído na esperança do povo brasileiro.

Se já tivemos “a esperança equilibrista”, se “a esperança crítica” já se fez necessária, agora é a hora da “esperança nova”. Com Manuel Bandeira e Drummond, renovemos o nosso sentimento do mundo. Se às ruas e aos movimentos libertários se somar a força dos trabalhadores organizados, nos próximos meses podemos por abaixo o governo golpista de Temer hoje e cada vez mais dirigido programaticamente pelo PSDB.
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Apesar de sua força institucional e de seu apoio midiático e empresarial, o governo Temer é fortemente instável por sua ilegitimidade e impopularidade.

Ao sonhador veraz, Mino Carta
Créditos da foto: Beto Barata
Por Juarez Guimarães

A esquerda brasileira ainda não formou um juízo unitário sobre a força e a fraqueza do governo Temer, se é possível pela via democrática interromper o seu mandato golpista ou se estamos diante de um longo período de resistência, cujo horizonte é defender com radicalidade as lideranças políticas e sociais em processo de criminalização, os direitos democráticos e sociais sob gravíssima ameaça, acumulando forças para uma nova etapa das lutas.

Há um risco evidente de transformar desejo em realidade, maximizando a instabilidade e minimizando a potência de estabilidade do governo Temer, ao mesmo tempo em que se descura dos limites programáticos, políticos e organizativos do nosso movimento político. A leitura de certos blogs alternativos da esquerda brasileira, que exercem um papel vital de contra-informação e contra-opinião em relação à grande mídia empresarial, pode alimentar diariamente este voluntarismo. Às vezes, parece até que a derrubada do governo Temer está à esquina; basta ir ao seu encontro!

Há, porém, um outro risco que é o de tomar a força institucional do governo Temer como símbolo da sua força política e o apoio empresarial e midiático como símbolo de sua legitimidade. Por esta análise, Temer, apesar da resistência importante ao golpe, cumprirá seguramente até o final o seu mandato de destruição do país e de criminalização das lideranças populares. O acúmulo político da esquerda neste contexto adverso seria feito fundamentalmente fora da institucionalidade, repondo suas energias históricas através de um novo programa de esquerda, sem conciliações com as classes dominantes, e de uma nova base social e militante capaz de sustentar um novo período de mudanças estruturais do país.

A reflexão proposta neste breve artigo procura compor o que há de força épica de uma vontade política com o que há de realismo político necessário em outra, formulando uma terceira hipótese que busca compreender a força e a fraqueza do governo Temer em relação com a força e fraqueza do movimento político que opõe resistência a ele. Trata-se de construir um quadro complexo e dinâmico de análise da conjuntura que se apóia em três dimensões analíticas chaves.

A primeira delas é que o governo Temer nasce de uma fortíssima convergência de forças políticas, corporativas judiciais, geopolíticas, empresariais e midiáticas – lideradas pelo PSDB- mas não conseguiu construir uma legitimidade democrática capaz de isolar ou marginalizar os que denunciam o golpe. Como estas dinâmicas de normalização e deslegitimação se relacionam e qual prevalecerá sobre a outra?

A segunda dimensão analítica busca entender mais precisamente os movimentos de formação de opinião pública desde a crise do segundo governo Dilma até o período após a votação no Senado que confirmou o golpe. A avaliação que se fará é que este movimento de opinião pública ainda não se estabilizou e está polarizado à esquerda e à direita, com um grande centro ainda indeciso entre se conformar ao possível do governo Temer ou apoiar decididamente quem luta imediatamente pelo seu fim.

A terceira dimensão analítica foca no amplo, diferenciado e em processo de construção, movimento político “Fora Temer”. O que se proporá é que a unidade deste movimento, a sua radicalidade democrática e a sua capacidade de incorporar as forças organizadas das classes trabalhadoras tem a capacidade de decidir os rumos da conjuntura.

Normalização , instabilidade e crise de governo

Para analisar o futuro do governo Temer , é preciso diferenciar ilegitimidade e impopularidade, instabilidade e crise de governo. Ilegitimidade diz respeito ao questionamento do caráter do próprio governo e a impopularidade mede o grau de sua rejeição às suas políticas. Instabilidade diz respeito ao grau de imprevisão sobre seu futuro a partir da precariedade de seus fundamentos e ingovernabilidade seria um caso extremo de instabilidade, na qual a própria ação de governo torna-se inviável.

Se definimos a normalização como o processo de crescente isolamento das lideranças ou forças políticas que questionam a legitimidade do governo Temer e propõem o seu final, pode-se afirmar que a vitória dos golpistas no Senado, mesmo com uma vantagem de votos com folga maior que a dos dois terços, não “virou a página” como esperava a inteligência estratégica que formulava publicamente a passagem do “governo interino” para o “presidente Temer”.

A presença forte, combativa e memorável de Dilma na sessão do Senado que cassou o seu mandato, as manifestações massivas e unitárias que a ela se seguiram no dia 31 de agosto e no dia 7 de setembro, a continuidade da repercussão internacional da narrativa que caracteriza o impeachment sem crime de responsabilidade como golpe, a decisão agora consensual da direção do PT – unido-se ao PC do B, ao PSOL e demais forças da esquerda -, em favor de uma campanha pelas diretas já são todas evidências de que não há um isolamento político do questionamento da legitimidade do governo Temer.

Se a vitória da normalização não se consumou, seria correto anunciar uma instabilidade crescente do governo Temer? De um ponto de vista estritamente institucional, esta não parece a tendência: a vitória de Rodrigo Maia para a presidência da Câmara teve o importante papel de soldar uma maioria congressual mais orgânica aos planos do governo Temer, propiciando em um segundo momento um aparente importante grau de controle sobre o processo de cassação de Cunha, cuja reação até agora tem sido muito aquém do escândalo disruptivo esperado; a eleição de Gilmar Mendes para a presidência do TSE e sua decisão de adiar o exame das contas da chapa Dilma/ Temer para o próximo ano retira uma outra dimensão de pressão imediata sobre o mandato de Temer; a indicação de um novo vice Procurador- Geral publicamente ligado a Aécio Neves por Janot anuncia um fortalecimento do PSDB em uma instância decisiva nestes tempos de judicialização.

Do STF, agora presidido por Carmen Lúcia, não se espera nenhuma decisão que possa ferir a estabilidade do governo Temer. O processo da Operação Lava-Jato tem aprofundado a sua, desde há muito visível e cada vez mais escandalosa, orientação partidária de caça ao PT e à liderança de Lula.

Por outro lado, os resultados das eleições municipais de 2016, se não confirmarem uma derrota da esquerda nos principais centros eleitorais do país, dificilmente terão um resultado nacional que possa ser apropriado diretamente contra a estabilidade do governo Temer. O trabalho de nacionalização das eleições municipais, iniciado tardiamente em função da crise de direção dos principais partidos de esquerda e de uma postura, em certos casos, sectária do PSOL, teve até agora resultados muito parciais.

Assim, a instabilidade do governo Temer está relacionada principalmente a uma possibilidade de crescimento expressivo e radical de sua impopularidade, que seja politicamente orientada para por um fim político ao seu mandato. É esta hipótese de um crescimento radical e fatal de sua impopularidade que explica a montagem da agenda do governo Temer em relação ao programa ultra-neoliberal que é reivindicado pelos capitais financeiros e pela força política que dirigiu programaticamente o golpe: inicia-se a agenda pela privatização e pelo regime de concessões , fartamente financiadas pelo BNES retornado a sua função privatista dos anos 90; após as eleições virá a tentativa de aprovar a estratégica PEC 241, fundamental para o desmonte das políticas públicas e, para o ano que vem, a reforma previdenciária e trabalhista. A reforma eleitoral, que talvez venha alinhada a uma recomposição partidária de um novo bloco de poder, pode ser, enfim, pensada casuisticamente para modelar o resultado já das eleições presidenciais de 2018.

A hipótese de uma crise de ingovernabilidade golpista ficaria, portanto, condicionada a um crescimento de um movimento político de massas, apoiado em uma radicalização da impopularidade do governo Temer, que poderia se combinar com dissidências e contradições no seio da ampla coalizão partidária e parlamentar que o sustenta.

Será esta hipótese possível ? É o que passamos a analisar a seguir.

Clivagens e movimentos da opinião pública; da resignação à revolta?

Um exame da última Pesquisa Nacional da Vox Populi, realizada entre os dias 29 de julho e 1 de agosto, mostra que esta hipótese hoje ainda não é possível. Se é verdade que 61 % dos brasileiros preferem o direito de escolher um novo presidente, quando estimulados por três respostas - a realização de eleições para presidente antes de 2018, o retorno de Dilma ou a permanência definitiva de Temer até 2018 -, os índices de avaliação do governo Temer não autorizam uma avaliação de que há uma insatisfação generalizada e, mais ainda, uma disposição majoritária para ir às ruas para exigir o seu fim. Em relação à pergunta acima formulada, apenas 17 % optaram por confirmar o seu mandato, o que demonstra a sua ilegitimidade mas não, nos termos que definimos, a sua ingovernabilidade.

Em relação à avaliação de Temer, se apenas 13 % têm uma avaliação positiva de seu governo, os que têm uma avaliação regular (38 %) são em maior número dos que têm uma avaliação claramente negativa (35 %), enquanto 14 % não opinaram. Isto ainda diferencia o seu governo do último período do governo Dilma, quando uma maioria de quase 2/3 avaliava como negativa o seu governo.

Na região Sudeste, há um empate entre os que têm avaliação negativa (42%) e os que têm avaliação regular (41%), enquanto 17 % o avaliam positivamente. No Sul, o governo Temer melhoraria sua avaliação: 51 % regular, 30 % negativo e 19 % positivo. No nordeste, a tendência se inverte com um claro porcentual maior de desaprovação.

É interessante ver a orientação classista ou popular destes dados. A rejeição a Temer cresce quando se vai da maior renda para a menor e do padrão educacional do universitário para o ensino fundamental. Assim, até 2 SM ( 46 % N, 41 % R e 13 % P), de 2 a 5 SM ( 40% N, 48 % R, 16 % P), mais que 5 SM ( 35 % N, 47 % R, 19 % P), sendo N negativo, R regular e P positivo. Ou, Ensino Fundamental (44% N, 44 % R, 12 % P), Ensino Médio ( 41 % N, 44 % R, 15 %P) e Ensino Superior ( 35 % N, 47 % R, 19 % P).

Como interpretar estes dados?

Uma análise profunda destes dados exigiria um trabalho interpretativo, de correlação, de análise de série de pesquisas, de utilização de outros bancos de dados, mais além do que caberia neste ensaio. Mas é possível lançar uma hipótese verossímil.

Ao que tudo indica, há cerca de 1/3 dos brasileiros que rejeitam Temer já de modo mais claro. Este 1 /3 provavelmente constitui a base histórica mais estável de votação na esquerda brasileira, que ainda continua votando em Lula no primeiro turno ( 28 %) e no segundo turno ( em torno a 35 %). Mas apenas cerca da metade dela apoiava a permanência de Dilma e hoje apenas 1 /3 dela mantém simpatia pelo PT, como registra a mesma pesquisa.

Se cerca de 1/3 dos brasileiros têm votado sistematicamente no PSDB em eleições presidenciais no primeiro turno ao longo das últimas eleições, é razoável supor que menos da metade deles apóiam decididamente o governo Temer. A outra metade, estaria formando ainda uma opinião mais definitiva, estando disponível até para vir apoiar uma eventual troca de comando do governo golpista, em favor do PSDB que já ocupa tantos postos chaves.

Se desde 1994 a 2014, 1/3 dos eleitores variou o seu voto pragmaticamente para a esquerda ou para a direita – ora dando maioria ao PSDB, ora dando maioria ao PT, da última vez dividindo-se quase ao meio - é de se supor que eles hoje formam a parte mais substantiva dos que ainda não formaram uma opinião sobre o governo Temer: não o consideram positivo ou negativo. Estão esperando para formar uma opinião.

O mais provável é que nos próximos meses este 1/3 de indecisos se volte cada vez mais para formar uma opinião negativa sobre o governo Temer. Por três razões conjugadas: a economia está longe de dar um sinal seguro de recuperação, com a manutenção das altas taxas de juro e cortes profundos nos gastos estatais, além de recuos nas rendas das famílias brasileiras, em um quadro negativo da economia internacional; as medidas anti-populares a serem tomadas pelo governo Temer terão uma repercussão fortemente negativa ; os escândalos e denúncias de corrupção continuarão atingindo fortemente o governo Temer e seus aliados.

Dados recém divulgados do Ibope para as capitais confiram esta previsão: o patamar de ruim/péssimo do governo Temer nas capitais já estaria na ordem de mais de 40 % no Sudeste e mais de 60 % no Nordeste. E as medidas mais anti-populares apenas começaram a ser encaminhadas.

O que ocorreria com um governo que já é fortemente ilegítimo para a maioria da população, passar a ser fortemente rejeitado também pela maioria da população?

Neste contexto, é possível que manifestações de revoltas massivas combinadas com dificuldades cada vez maiores do governo em manter a sua base parlamentar coesa, em meio a um crescimento das tensões no interior da coalizão que o viabiliza, forme uma crise fatal para o governo Temer.

Imaginar politicamente a queda do governo Temer 

Se a mídia empresarial a cada dia nos quer mostrar porque a esquerda não tem sequer identidade e está derrotada, aprendemos dia a dia nas ruas lições de como a esquerda se reinventa, pode e precisa ser vitoriosa. Mas alguém já formulou a imaginação política da derrota definitiva dos golpistas?

Esta imaginação está no editorial de Mino Carta “Em busca da consciência” da revista Carta Capital do dia 14 de setembro que traz na capa engajada as bandeiras do “Fora Temer” e “Diretas já”. Diz Mino Carta, no site da revista, sempre com uma garrafa de vinho – in vino veritas? – e uma taça à mão: “ A ilegitimidade do governo Temer é nítida não somente aos olhos estrangeiros, e o “Fora Temer” já sobrepuja o tom e o efeito do “fora Dilma”. Bons sinais em meio ao caos. Apreciaria evitar ilusões pela enésima vez, mas lá vou eu, de novo. E me arrisco: quem sabe algum dia o brasileiro do futuro, próximo, espero, possa dizer que o golpe de uma quadrilha a serviço da casa-grande teve o condão de despertar a consciência nacional”.

“A vida é sonho”, já se escreveu, e o verismo que soubermos viver neles, acrescentamos. É preciso analisar também a força e a fraqueza do movimento político “Fora Temer”.

A sua força pode ser sinteticamente revelada em três fundamentos mutuamente configurados. Em um momento em que a esquerda brasileira corria o risco de perder sem identidade – ser posta abaixo e praticando políticas econômicas neoliberais -, o movimento “Fora Temer” repôs o vermelho anti-neoliberal e anti-golpista nas ruas. Sob o risco de descentramento e dissolução, o movimento “Fora Temer” soube construir uma unidade política - a Frente Brasil Popular, a Frente Povo Sem Medo - que há mais de uma década não se verificava. Por fim, o movimento “Fora Temer” é político-cultural e libertário, trouxe os artistas, as mulheres, os negros, os gays para o primeiro plano da luta política, “caminhando e cantando como nos velhos tempos”, Chico mas também Caetano e Gil, o nacional-popular e a Tropicália, juntos como nunca.

A sua fraqueza, da mesma forma, pode e deve ser também escavada: ele repôs o vermelho mas não ocupou o verde-amarelo, isto é, foi identitário de esquerda mas não hegemônico. É possível que 99 % dos que participaram das manifestações de rua votaram em Dilma no segundo turno em 2014, embora uma parte importante dos que nela votaram, na rua não compareceram. A segunda fraqueza, decisiva, foi a ausência das bases dos movimentos sindicais, embora a CUT tenha tido um papel decisivo em várias momentos, e também dos povos das periferias, embora lideranças populares tenham também cumprido um papel fundamental . Além disso, em função de seu processo de institucionalização, a esquerda brasileira carece de bases organizativas e comunicativas à altura de um protagonismo hegemônico.

Daí o risco maior de falar para si, de perder o sentido da formação das maiorias a partir de sua identidade. Falta a esta esquerda um programa para um novo ciclo de mudanças, “democrático e popular”. A noção de que um ciclo de mudanças por dentro da ordem política corrompida e não reformada e em conciliação com as forças do capital financeiro chegou ao final, agora é uma consciência generalizada. O que antes se programatizava na esquerda do PT como impasse, na cisão do PT, muitas vezes sectariamente, como traição, agora se tornou consciência generalizada ou, pelo menos, majoritária. Uma refundação da esquerda brasileira está no horizonte.

O movimento político “For a Temer” precisa agora se tornar hegemônico, no sentido mesmo de Gramsci. Por quais caminhos?

É possível pensar em três grandes vetores de universalização.

O primeiro deles é o de vincular o “Fora Temer” com a reivindicação democrática das “Diretas já”, que representa, no contexto, o caminho da reposição da soberania popular. Não se trata apenas de um slogan mas de uma campanha em torno a uma solução democrática para o impasse brasileiro que se dirige a todos que são contra o golpe mas não se sentem representados pela esquerda. A esquerda brasileira tem que reconstruir as suas razões republicanas no coração do povo brasileiro: daí a importância estratégica central de um plebiscito para a convocação de uma Assembléia Constituinte Extraordinária para fazer a reforma política.

O segundo caminho é da convocação a todos para defender a liderança histórica de Lula diante da sua infamante perseguição e ameaça de cassação. Este é o movimento histórico de uma nova fusão programática entre uma esquerda renovada e um novo ciclo popular de mudanças, de sentido frentista político, latino-americano e internacionalista, no sentido de que Lula é hoje, mais do que nunca, a principal liderança popular da esquerda mundial. Mais do que nunca precisamos do Lula, alma de peão de São Bernardo, e Lula precisa de nós, não apenas para resistir, mas para ir além.

O terceiro caminho é o da “dialética negativa”, para retomar a bela expressão de Adorno. Não há mais como defender os direitos do trabalho, os direitos da saúde e da educação, da previdência, dos negros e das mulheres, separadamente e até corporativamente. Sobretudo não há mais como defender estes direitos sem por no centro o ataque aos poderes do capital financeiro e dos rentistas na democracia brasileira. Um novo ciclo de formação de direitos, universal e distributivo, feminista e anti-racista, libertário e ecológico, precisa programaticamente ser construído na esperança do povo brasileiro.

Se já tivemos “a esperança equilibrista”, se “a esperança crítica” já se fez necessária, agora é a hora da “esperança nova”. Com Manuel Bandeira e Drummond, renovemos o nosso sentimento do mundo. Se às ruas e aos movimentos libertários se somar a força dos trabalhadores organizados, nos próximos meses podemos por abaixo o governo golpista de Temer hoje e cada vez mais dirigido programaticamente pelo PSDB.
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