Na entrevista da edição nº 17 da Revista e-metropolis, a professora Maria Lígia de Oliveira Barbosa nos fala sobre a relação complexa entre o funcionamento do sistema de ensino superior e os mecanismos de produção e organização das desigualdades nas sociedades modernas. A socióloga analisa a valorização diferenciada dos diversos títulos escolares e sua contribuição para a legitimação das hierarquias entre os grupos sociais. Na sua visão, a passagem pelo sistema universitário, enquanto etapa do processo de construção do homem culto, reafirma os aspectos academicista e patriarcalista da nossa sociedade.
Maria Lígia de Oliveira Barbosa é professora do Programa de Pós-graduação em Antropologia e Sociologia da UFRJ. É coordenadora do Laboratório de Pesquisa em Ensino Superior e recentemente organizou o livro “Ensino superior: expansão e democratização”, com uma série de trabalhos que ajudam a compreender o quadro atual e os desafios que se abrem para a institucionalização de um ensino superior de qualidade no Brasil. (mligiaifcs@gmail.com)
Revista e-metrópolis: Nas duas últimas décadas, o ensino superior brasileiro viveu uma expansão bastante significativa, acompanhada de um processo de diversificação de sua estrutura. De que modo as ciências sociais podem ajudar na compreensão do funcionamento do sistema de ensino superior e do seu papel na produção e organização das desigualdades nas sociedades modernas?
Como disse antes, o tema do ensino superior é sempre atraente, seja nas conversas informais seja nos colóquios científicos. Nas conversas comuns, o ensino superior aparece como aspiração ‘natural’, como solução para alguns tipos de problemas sociais e econômicos, como espaço da inteligência, competência, seriedade. Em colóquios científicos, talvez por um irresistível pendor psicanalítico de quem apostou todas as suas cartas no mundo acadêmico, há uma busca permanente de explicação dos sentidos e significados do ensino superior em cada sociedade. Mesmo que essas avaliações não tomem a forma direta nem apareçam com esse nome. Na verdade, essas questões permeiam todo o discurso crítico e autocrítico sobre as atividades acadêmicas.
Entretanto, indo um pouco além das conversas entre amigos, são variadas as abordagens das ciências sociais sobre os sistemas de ensino superior. A expansão e diversificação do ensino superior brasileiros nas duas últimas décadas têm gerado importantes discussões sobre o seu significado que se tornou particularmente importante num país com níveis muito baixos de escolarização. Nesse sentido, uma contribuição específica da abordagem sociológica seria o levantamento de hipóteses que oferecessem explicações para algumas das dimensões propriamente sociais desse processo de expansão.
Como bem sabemos, a valorização diferenciada dos diversos diplomas configura um problema de pesquisa sociológica que passa tanto pela discussão dos significados e definições do mérito como fator organizador das hierarquias sociais modernas quanto pela correta compreensão das formas de funcionamento dos sistemas de ensino e da produção das credenciais escolares. Há uma relação complexa entre o funcionamento do sistema de ensino e o mercado de trabalho, e vários estudos indicam que compreender de maneira adequada essa relação é uma chave essencial para explicar não só os diversos mecanismos de hierarquização das competências e qualificações no mercado de trabalho como também para entender como a passagem por instituições do sistema de ensino afeta as chances de vida e de desenvolvimento profissional e pessoal. Enfim, como funcionam alguns dos mecanismos de produção e organização das desigualdades nas sociedades modernas.
Revista e-metrópolis: No livro (Ensino superior: expansão e democratização) você usa dois modelos com perspectivas opostas – o credencialista e o meritocrático – para analisar as percepções sobre os diferentes diplomas do atual ensino superior brasileiro. Como você enxerga o sentido da valorização dos títulos escolares e a sua contribuição para a organização desigual da sociedade?
Os modelos credencialista e meritocrático nos permitem entender melhor essa relação de que falei. São formas diferentes de valorizar e dar sentido ao ensino, à passagem pelo sistema de ensino. Em qualquer um dos níveis. Mas me parece importante destacar essas perspectivas no que diz respeito ao ensino superior, exatamente pelos possíveis avanços na sua democratização no momento em que mais pessoas das classes populares conseguem chegar aqui. A predominância de um modelo ou do outro pode afetar profundamente as chances de aproveitamento com sucesso da formação obtida no ensino superior.
Numa versão mais radical dos sistemas ditos credencialistas, os títulos escolares ou credenciais acadêmicas aparecem como simples marcas sociais, sem qualquer conteúdo relevante. Nesse caso, não haveria uma ligação razoável entre o que a escola ensina e aquilo que se faz no trabalho. Numa sociedade que funcione mais fortemente segundo esse modelo, a instituição escolar apareceria apenas como um mecanismo de legitimação da herança social através da diplomação dos filhos das famílias mais afluentes, sem qualquer papel importante na transmissão de conhecimentos ou na preparação técnica para o trabalho. Nesse sentido, os diplomas superiores teriam um valor meramente posicional. Isso é: um indivíduo portador de um diploma universitário, mesmo que não tenha aprendido nada, que desconheça princípios elementares de qualquer trabalho, seria valorizado porque socialmente ele é visto como superior aos que não tenham esse diploma.
A segunda forma de valorização do sistema de ensino é aquela que podemos chamar meritocrática. Nesse caso, supõe-se uma associação positiva entre o que é ensinado na escola e aquilo que se necessita ou que se utiliza na vida econômica, no mercado de trabalho, nas empresas. Também ganha relevância a discussão sobre o lugar tomado pela ciência nas sociedades modernas: o conhecimento científico adquiriu enorme legitimidade e deslocou os saberes tradicionais (religiosos ou místicos) para se tornar a base principal de legitimação das hierarquias entre diferentes grupos sociais.
É importante notar que não se trata de uma forma de tornar as pessoas iguais. O mérito aparece como uma das características da sociedade moderna como sendo um critério mais legítimo para hierarquizar as pessoas. Em diversas sociedades, considera-se legítimo que quem estudou mais receba salários maiores do que quem estudou menos. A ideia de mérito aparece aqui não como uma utopia igualitária, mas como um critério mais legítimo que a origem familiar para se aceitar sucessos de uns e fracasso de outros. Nesse sentido, a ideia de mérito vem associada no trabalho que fazemos não a uma ideologia meritocrática, mas a um critério mais ou menos efetivamente utilizado para hierarquizar as pessoas.
Por isso é importante diferenciar um sistema de ensino que produza meros marcadores sociais de outro sistema que produza aumento efetivo de conhecimento e realmente capacite seus egressos a disputar postos de trabalho e posições sociais por razões de merecimento. Não por ser, na expressão popular, filhinho de papai rico ou poderoso. Um sistema mais fortemente credencialista apenas permitiria que diferentes pessoas se apresentassem para a disputa social. No caso da sociedade brasileira, ainda muito pouco meritocrática, não é difícil verificar quem seriam os ganhadores e perdedores. Já um sistema com características mais meritocrática habilitaria de forma efetiva os indivíduos que passaram por esse sistema de ensino para disputar as melhores posições sociais. O conhecimento efetivamente detido pelos indivíduos tenderia a fazer mais diferença que a origem social. O que tornaria as hierarquias sociais mais legítimas e até mesmo justas.
Revista e-metrópolis: Em que medida a valorização distinta de títulos escolares indica maior proximidade da sociedade brasileira como um modelo meritocrático ou credencialista?
Revista e-metrópolis: Em que medida a valorização distinta de títulos escolares indica maior proximidade da sociedade brasileira como um modelo meritocrático ou credencialista?
No caso do Brasil, os dados indicam que temos um sistema fortemente credencialista, que aparece desde a legislação que concede privilégios na prisão a bandidos diplomados até em dimensões mais refinadas do ponto de vista analítico, como é o caso do formato dos cursos, dos conteúdos curriculares em diferentes áreas e, eu diria, até na deficiência de engenheiros, matemáticos e outros profissionais de áreas científicas que demandam uma formação mais pesada. Essa é uma questão em que eu gostaria de investir mais, porque acredito que a melhor compreensão do funcionamento das diferentes áreas de produção de conhecimento, das forças sociais que aí atuam é um campo central para a pesquisa sociológica. No mínimo, para que se pare de afirmar que brasileiro é bom de bola e ruim de matemática. É onde se verifica que não se trata da ordem natural das coisas, como se dizia antigamente. Seja a forma do sistema de ensino, sejam os avanços nos diferentes campos científicos, sejam as formas de ensinar, sejam os modos de produzir ciência, todos sofrem impactos e se redesenham a partir dos modos sociais de lidar com cada um deles.
Revista e-metrópolis: Alguns autores sugerem que o
alongamento e a diversificação da
escolarização formal são parte das
estratégias elitistas de manutenção
do poder, numa perspectiva que
entende a educação como critério
dominante de hierarquização social.
Qual o papel da classe média na
manutenção das desigualdades
escolares e na definição do mérito
pela educação?
Eu tenderia a concordar com esses autores. No caso brasileiro, um estudo de Chico Ferreira (que foi da PUC-Rio) mostra que com toda expansão do nosso sistema de ensino e algumas das poucas melhorias nele introduzidas, mesmo assim, a origem social é um fator mais importante para determinar a renda dos indivíduos do que a escolaridade. Uma das hipóteses que o autor levanta é que as classes médias teriam condições muito mais fáceis de acessar e determinar regras para o sistema de ensino. E, sendo assim, teriam condições de também desenvolver estratégias que garantissem que continuariam tendo privilégios no sistema social. Claro que isso demanda mais estudo, mas não é difícil ver os modelos utilizados no processo de expansão do sistema de ensino superior como parte de estratégias desses grupos privilegiados. A elite não entrega o ouro tão facilmente... A exclusividade e o privilégio concedidos ao diploma puramente bacharelesco e acadêmico em detrimento de formações tecnológicas ou das licenciaturas seriam uma evidência nessa direção. Desde que se compreenda que estratégia não é um plano diabólico, combinado nos porões ou nas garagens das elites para não deixar os pobres estudarem. Estratégia é trabalhar para fazer valer um conjunto de regras sociais que reforçam o meu grupo. Cada um faz isso de maneira natural. Sem intenções previamente concertadas. Cabe aos analistas perceber o que significa efetivamente a execução dessas regras, quais são seus resultados práticos. Esses começam a se desenhar em cursos de licenciatura vistos como sendo ‘coisa pra pobre’ ou ‘atividade de segunda linha’ dentro das grandes e prestigiadas universidades do sistema público. Mas também na transformação de cursos técnicos e tecnológicos em arremedos de bacharelados, sem oferecer uma efetiva formação prática e técnica e ministrando disciplinas fracas do ponto de vista teórico ou científico. Nesses cursos, claramente, o sistema tende ao mais absoluto credencialismo...
Revista e-metrópolis: No livro você aponta uma série de ineficiências econômicas e sociais no sistema de ensino superior brasileiro. É possível atribuí-las à força dos títulos acadêmicos, que valoriza os bacharelados em detrimento das licenciaturas e cursos tecnológicos? Em que medida esse academicismo representaria um retrocesso na forma de dominação, reafirmando o bacharelismo/ patrimonialismo contra uma perspectiva mais técnica ou profissional?
Como diria Jack, o estripador, vamos por partes. Acredito que o academicismo seja responsável por ineficiências sociais e econômicas. No primeiro caso, pelo que disse logo acima. Os jovens oriundos das classes populares têm vindo com bastante força para as licenciaturas, deixadas de lado pelos filhos de ‘boas famílias’. E, ao fim do curso, recebem um diploma, legal e teoricamente igual aos colegas que fizeram o bacharelado. Na prática, esses jovens descobrem que esse diploma não é tão igual. O mesmo vale para os jovens que vão para os cursos tecnológicos, de duração semelhante àquela que cursam seus colegas nas engenharias. Então, parece - ainda precisamos tornar isso mais evidente, com fortes pesquisas de acompanhamento de egressos, por exemplo – que os jovens mais pobres que chegaram à universidade não tiveram um sucesso tão grande. Mesmo quando conseguem terminar o curso, o que nem sempre acontece. As promessas de aumento da igualdade de oportunidades não foram cumpridas. Uma incompetência social grave. Também uma grave ineficiência.
As ineficiências econômicas apareceriam nas dificuldades encontradas pelos empresários para recrutar profissionais mais qualificados. Desde um garçom até um engenheiro.
Quanto à associação entre academicismo e patriarcalismo é o próprio Weber que faz uma primeira alusão ao problema. Segundo ele, a pedagogia do cultivo – um dos traços centrais da visão academicista do que deveria ser a universidade – é a forma didática por excelência da dominação patrimonial. Dessa perspectiva, a passagem pelo sistema universitário não significa ter acesso a uma formação científica. Ela é uma etapa do processo – iniciado na família, obviamente de elite – de produção do homem culto. Dessa forma, o academicismo também se liga ao credencialismo: o indivíduo que passa pela universidade não vai aprender alguma coisa para se firmar no mercado de trabalho. Ele vai se preparar para participar de bucólicas conversações nos salões da nobreza tropical, para discutir os rumos do mundo numa boa uisqueria. Ele não é um cientista ou um profissional: ele é um homem culto.
Fonte: Observatório das Metrópoles / Revista e-metropolis
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Na entrevista da edição nº 17 da Revista e-metropolis, a professora Maria Lígia de Oliveira Barbosa nos fala sobre a relação complexa entre o funcionamento do sistema de ensino superior e os mecanismos de produção e organização das desigualdades nas sociedades modernas. A socióloga analisa a valorização diferenciada dos diversos títulos escolares e sua contribuição para a legitimação das hierarquias entre os grupos sociais. Na sua visão, a passagem pelo sistema universitário, enquanto etapa do processo de construção do homem culto, reafirma os aspectos academicista e patriarcalista da nossa sociedade.
Maria Lígia de Oliveira Barbosa é professora do Programa de Pós-graduação em Antropologia e Sociologia da UFRJ. É coordenadora do Laboratório de Pesquisa em Ensino Superior e recentemente organizou o livro “Ensino superior: expansão e democratização”, com uma série de trabalhos que ajudam a compreender o quadro atual e os desafios que se abrem para a institucionalização de um ensino superior de qualidade no Brasil. (mligiaifcs@gmail.com)
Revista e-metrópolis: Nas duas últimas décadas, o ensino superior brasileiro viveu uma expansão bastante significativa, acompanhada de um processo de diversificação de sua estrutura. De que modo as ciências sociais podem ajudar na compreensão do funcionamento do sistema de ensino superior e do seu papel na produção e organização das desigualdades nas sociedades modernas?
Como disse antes, o tema do ensino superior é sempre atraente, seja nas conversas informais seja nos colóquios científicos. Nas conversas comuns, o ensino superior aparece como aspiração ‘natural’, como solução para alguns tipos de problemas sociais e econômicos, como espaço da inteligência, competência, seriedade. Em colóquios científicos, talvez por um irresistível pendor psicanalítico de quem apostou todas as suas cartas no mundo acadêmico, há uma busca permanente de explicação dos sentidos e significados do ensino superior em cada sociedade. Mesmo que essas avaliações não tomem a forma direta nem apareçam com esse nome. Na verdade, essas questões permeiam todo o discurso crítico e autocrítico sobre as atividades acadêmicas.
Entretanto, indo um pouco além das conversas entre amigos, são variadas as abordagens das ciências sociais sobre os sistemas de ensino superior. A expansão e diversificação do ensino superior brasileiros nas duas últimas décadas têm gerado importantes discussões sobre o seu significado que se tornou particularmente importante num país com níveis muito baixos de escolarização. Nesse sentido, uma contribuição específica da abordagem sociológica seria o levantamento de hipóteses que oferecessem explicações para algumas das dimensões propriamente sociais desse processo de expansão.
Como bem sabemos, a valorização diferenciada dos diversos diplomas configura um problema de pesquisa sociológica que passa tanto pela discussão dos significados e definições do mérito como fator organizador das hierarquias sociais modernas quanto pela correta compreensão das formas de funcionamento dos sistemas de ensino e da produção das credenciais escolares. Há uma relação complexa entre o funcionamento do sistema de ensino e o mercado de trabalho, e vários estudos indicam que compreender de maneira adequada essa relação é uma chave essencial para explicar não só os diversos mecanismos de hierarquização das competências e qualificações no mercado de trabalho como também para entender como a passagem por instituições do sistema de ensino afeta as chances de vida e de desenvolvimento profissional e pessoal. Enfim, como funcionam alguns dos mecanismos de produção e organização das desigualdades nas sociedades modernas.
Revista e-metrópolis: No livro (Ensino superior: expansão e democratização) você usa dois modelos com perspectivas opostas – o credencialista e o meritocrático – para analisar as percepções sobre os diferentes diplomas do atual ensino superior brasileiro. Como você enxerga o sentido da valorização dos títulos escolares e a sua contribuição para a organização desigual da sociedade?
Os modelos credencialista e meritocrático nos permitem entender melhor essa relação de que falei. São formas diferentes de valorizar e dar sentido ao ensino, à passagem pelo sistema de ensino. Em qualquer um dos níveis. Mas me parece importante destacar essas perspectivas no que diz respeito ao ensino superior, exatamente pelos possíveis avanços na sua democratização no momento em que mais pessoas das classes populares conseguem chegar aqui. A predominância de um modelo ou do outro pode afetar profundamente as chances de aproveitamento com sucesso da formação obtida no ensino superior.
Numa versão mais radical dos sistemas ditos credencialistas, os títulos escolares ou credenciais acadêmicas aparecem como simples marcas sociais, sem qualquer conteúdo relevante. Nesse caso, não haveria uma ligação razoável entre o que a escola ensina e aquilo que se faz no trabalho. Numa sociedade que funcione mais fortemente segundo esse modelo, a instituição escolar apareceria apenas como um mecanismo de legitimação da herança social através da diplomação dos filhos das famílias mais afluentes, sem qualquer papel importante na transmissão de conhecimentos ou na preparação técnica para o trabalho. Nesse sentido, os diplomas superiores teriam um valor meramente posicional. Isso é: um indivíduo portador de um diploma universitário, mesmo que não tenha aprendido nada, que desconheça princípios elementares de qualquer trabalho, seria valorizado porque socialmente ele é visto como superior aos que não tenham esse diploma.
A segunda forma de valorização do sistema de ensino é aquela que podemos chamar meritocrática. Nesse caso, supõe-se uma associação positiva entre o que é ensinado na escola e aquilo que se necessita ou que se utiliza na vida econômica, no mercado de trabalho, nas empresas. Também ganha relevância a discussão sobre o lugar tomado pela ciência nas sociedades modernas: o conhecimento científico adquiriu enorme legitimidade e deslocou os saberes tradicionais (religiosos ou místicos) para se tornar a base principal de legitimação das hierarquias entre diferentes grupos sociais.
É importante notar que não se trata de uma forma de tornar as pessoas iguais. O mérito aparece como uma das características da sociedade moderna como sendo um critério mais legítimo para hierarquizar as pessoas. Em diversas sociedades, considera-se legítimo que quem estudou mais receba salários maiores do que quem estudou menos. A ideia de mérito aparece aqui não como uma utopia igualitária, mas como um critério mais legítimo que a origem familiar para se aceitar sucessos de uns e fracasso de outros. Nesse sentido, a ideia de mérito vem associada no trabalho que fazemos não a uma ideologia meritocrática, mas a um critério mais ou menos efetivamente utilizado para hierarquizar as pessoas.
Por isso é importante diferenciar um sistema de ensino que produza meros marcadores sociais de outro sistema que produza aumento efetivo de conhecimento e realmente capacite seus egressos a disputar postos de trabalho e posições sociais por razões de merecimento. Não por ser, na expressão popular, filhinho de papai rico ou poderoso. Um sistema mais fortemente credencialista apenas permitiria que diferentes pessoas se apresentassem para a disputa social. No caso da sociedade brasileira, ainda muito pouco meritocrática, não é difícil verificar quem seriam os ganhadores e perdedores. Já um sistema com características mais meritocrática habilitaria de forma efetiva os indivíduos que passaram por esse sistema de ensino para disputar as melhores posições sociais. O conhecimento efetivamente detido pelos indivíduos tenderia a fazer mais diferença que a origem social. O que tornaria as hierarquias sociais mais legítimas e até mesmo justas.
Revista e-metrópolis: Em que medida a valorização distinta de títulos escolares indica maior proximidade da sociedade brasileira como um modelo meritocrático ou credencialista?
Revista e-metrópolis: Em que medida a valorização distinta de títulos escolares indica maior proximidade da sociedade brasileira como um modelo meritocrático ou credencialista?
No caso do Brasil, os dados indicam que temos um sistema fortemente credencialista, que aparece desde a legislação que concede privilégios na prisão a bandidos diplomados até em dimensões mais refinadas do ponto de vista analítico, como é o caso do formato dos cursos, dos conteúdos curriculares em diferentes áreas e, eu diria, até na deficiência de engenheiros, matemáticos e outros profissionais de áreas científicas que demandam uma formação mais pesada. Essa é uma questão em que eu gostaria de investir mais, porque acredito que a melhor compreensão do funcionamento das diferentes áreas de produção de conhecimento, das forças sociais que aí atuam é um campo central para a pesquisa sociológica. No mínimo, para que se pare de afirmar que brasileiro é bom de bola e ruim de matemática. É onde se verifica que não se trata da ordem natural das coisas, como se dizia antigamente. Seja a forma do sistema de ensino, sejam os avanços nos diferentes campos científicos, sejam as formas de ensinar, sejam os modos de produzir ciência, todos sofrem impactos e se redesenham a partir dos modos sociais de lidar com cada um deles.
Revista e-metrópolis: Alguns autores sugerem que o
alongamento e a diversificação da
escolarização formal são parte das
estratégias elitistas de manutenção
do poder, numa perspectiva que
entende a educação como critério
dominante de hierarquização social.
Qual o papel da classe média na
manutenção das desigualdades
escolares e na definição do mérito
pela educação?
Eu tenderia a concordar com esses autores. No caso brasileiro, um estudo de Chico Ferreira (que foi da PUC-Rio) mostra que com toda expansão do nosso sistema de ensino e algumas das poucas melhorias nele introduzidas, mesmo assim, a origem social é um fator mais importante para determinar a renda dos indivíduos do que a escolaridade. Uma das hipóteses que o autor levanta é que as classes médias teriam condições muito mais fáceis de acessar e determinar regras para o sistema de ensino. E, sendo assim, teriam condições de também desenvolver estratégias que garantissem que continuariam tendo privilégios no sistema social. Claro que isso demanda mais estudo, mas não é difícil ver os modelos utilizados no processo de expansão do sistema de ensino superior como parte de estratégias desses grupos privilegiados. A elite não entrega o ouro tão facilmente... A exclusividade e o privilégio concedidos ao diploma puramente bacharelesco e acadêmico em detrimento de formações tecnológicas ou das licenciaturas seriam uma evidência nessa direção. Desde que se compreenda que estratégia não é um plano diabólico, combinado nos porões ou nas garagens das elites para não deixar os pobres estudarem. Estratégia é trabalhar para fazer valer um conjunto de regras sociais que reforçam o meu grupo. Cada um faz isso de maneira natural. Sem intenções previamente concertadas. Cabe aos analistas perceber o que significa efetivamente a execução dessas regras, quais são seus resultados práticos. Esses começam a se desenhar em cursos de licenciatura vistos como sendo ‘coisa pra pobre’ ou ‘atividade de segunda linha’ dentro das grandes e prestigiadas universidades do sistema público. Mas também na transformação de cursos técnicos e tecnológicos em arremedos de bacharelados, sem oferecer uma efetiva formação prática e técnica e ministrando disciplinas fracas do ponto de vista teórico ou científico. Nesses cursos, claramente, o sistema tende ao mais absoluto credencialismo...
Revista e-metrópolis: No livro você aponta uma série de ineficiências econômicas e sociais no sistema de ensino superior brasileiro. É possível atribuí-las à força dos títulos acadêmicos, que valoriza os bacharelados em detrimento das licenciaturas e cursos tecnológicos? Em que medida esse academicismo representaria um retrocesso na forma de dominação, reafirmando o bacharelismo/ patrimonialismo contra uma perspectiva mais técnica ou profissional?
Como diria Jack, o estripador, vamos por partes. Acredito que o academicismo seja responsável por ineficiências sociais e econômicas. No primeiro caso, pelo que disse logo acima. Os jovens oriundos das classes populares têm vindo com bastante força para as licenciaturas, deixadas de lado pelos filhos de ‘boas famílias’. E, ao fim do curso, recebem um diploma, legal e teoricamente igual aos colegas que fizeram o bacharelado. Na prática, esses jovens descobrem que esse diploma não é tão igual. O mesmo vale para os jovens que vão para os cursos tecnológicos, de duração semelhante àquela que cursam seus colegas nas engenharias. Então, parece - ainda precisamos tornar isso mais evidente, com fortes pesquisas de acompanhamento de egressos, por exemplo – que os jovens mais pobres que chegaram à universidade não tiveram um sucesso tão grande. Mesmo quando conseguem terminar o curso, o que nem sempre acontece. As promessas de aumento da igualdade de oportunidades não foram cumpridas. Uma incompetência social grave. Também uma grave ineficiência.
As ineficiências econômicas apareceriam nas dificuldades encontradas pelos empresários para recrutar profissionais mais qualificados. Desde um garçom até um engenheiro.
Quanto à associação entre academicismo e patriarcalismo é o próprio Weber que faz uma primeira alusão ao problema. Segundo ele, a pedagogia do cultivo – um dos traços centrais da visão academicista do que deveria ser a universidade – é a forma didática por excelência da dominação patrimonial. Dessa perspectiva, a passagem pelo sistema universitário não significa ter acesso a uma formação científica. Ela é uma etapa do processo – iniciado na família, obviamente de elite – de produção do homem culto. Dessa forma, o academicismo também se liga ao credencialismo: o indivíduo que passa pela universidade não vai aprender alguma coisa para se firmar no mercado de trabalho. Ele vai se preparar para participar de bucólicas conversações nos salões da nobreza tropical, para discutir os rumos do mundo numa boa uisqueria. Ele não é um cientista ou um profissional: ele é um homem culto.
Fonte: Observatório das Metrópoles / Revista e-metropolis
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